Inspirar-Poesia, um segundo sopro

lembranças de domingos - a cadeira...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010

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Encaixotava e enlaçava seus abismos e lá ia de presente para o mundo aquela bomba, pronta para explodir. A água que se bebe é sempre a mesma e a ingenuidade é uma criança privada de gente por toda vida. Quando era menina eu cria que o mundo era um lugar bem longe de mim ai criei o gato de botas e um País de maravilhas. Alice foi morar no mundo e eu fui prá São Paulo, ingênua e desacostumada de saudade. Mas se eu não for quem sou, quem é que é? Quem me será que sou? Eu resolvi fazer faxina e achei a caixa de ‘retratos’ em branco e preto. À rua consertar sapatos saímos eu a bomba e sua angústia regressiva de saudade. Achar sapateiros em São Paulo carece sorte, muita agulha e um palheiro... Em Santo Amaro encontrei um com máquina, banco e um periquito a sujar tudo e me pediu para esperar. A sinfonia do lugar lembrou meu vilarejo e assim peguei o amarrado de ‘retratos’ e vi o filme do Tornatore, outra vez. Cada amigo de infância era um sorriso e a risada escangalhada era a lembrança de alguns tombos.
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Ai achei meu Vô na cadeira de balanço. Hoje eu penso que amar faz bem porque faz desejar compreender o outro, ser tolerante e ter vontade de ser e de fazer feliz sentar junto e conversar. Cuidar do outro é tudo que se quer e eu amava aquele meu Vô lindo com o cabelo bem branquinho... Mas não deve ser coisa de Deus ou dos deuses esse negócio de desprezo e menosprezo... É coisa de gente, mesmo. É coisa do humano desprovido de humanidade mesmo. Ai botar na conta de deus a crueldade que se faz, é sacanagem e aquela foto me lembrou o que faziam com meu Vô naqueles dias...Nem sei por que lembrei tão claramente o que passou naqueles domingos que de engraçados éramos só eu e o meu Vô (porque o resto era um inferno). Pensando bem foi meu nariz que acendeu minha memória. O cheiro daquele lugar levou o tempo narina adentro e prá bem longe lá bem dentro de um tempo e aquele tempo voltou de uma só vez... Era tanta náusea que eu sentia com o cheiro enjoativo do talco e do leite de rosas, naftalina e brilhantina ‘Glostora’ nos cabelos com ‘marrafas’ segurando rococós e a pomada ‘Minancora’ cobrindo a espinha do nariz... A Cadeira de vovô era cativa e balançava sem parar. O exército invadia meus domingos e o horror tomava conta do sítio com primos, tias, periquitos, papagaios, cachorros, (os cavalos eram eles à mesa) e toda bagunça do mundo se fazia em um só dia. Muita comida, bebida, copo que caia, criança que chorava e comadre que gritava e haja requinte. Alfredo disputava os ossos com os cachorros que rosnavam e ele a infernizar o bob aos pontapés mostrando o osso pro pobre do cachorro babar até morrer...
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Loucura mesmo era a lascívia dos gatos que roçavam as pernas roliças de tia Cândida e Alaíde solteironas beatas-vitalinas, cheias de pudor e falsidade que diziam jamais se casariam pois nem queriam e homem algum as merecia ou seu amor. Finas e requintadas, jamais, lavariam cuecas (e nem seriam roçadas às pernas a não ser pelos gatos tarados de madrinha). Mas falavam mal de toda cidade com olhos e bocas que torciam à direita volvendo à esquerda a condenar aquilo tudo que não lhes fora possível fazer com os homens (mas que dava prá ver, que bem queriam, pelo frenesi com que tremiam em ais e uis pedindo ao tio mais linguiça...) Eram as tias mais donzelas e pudicas de araque, sedentas e safadas que só vendo. Via-se no frêmito do tronco e sob as saias se calculava que a lascívia e o fogo às levaria direto ao confessionário (ou ao inferno) na próxima missa, e haja penitência... Rezavam terços usavam véus e, castas, qual ‘Geny e o Zepellin’, usavam calçolas (super sexy) feitas em puro algodão dos sacos de açúcar aproveitados e reforçados em costura dupla e de tão grande seus traseiros, boatavam os fofoqueiros vingativos que, de costas, em suas nádegas todos liam o rótulo: [IRMÃOS PRIMO S.A. - AÇUCAR UNIÃO] (não sei por que tanto zelo, mistério e apego àquela altura da vida). Aos domingos sempre a mesma algazarra com bocas se entupindo de frango, macarrão e farofa que se espalhava pelo ar no descuido ou descontrole da risada (um teatro do absurdo).
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Menina e muito quieta eu nem me incomodava, como hoje, com toda aquela finesse e discrição coletiva. Aquilo tudo era patético que só vendo. Meus ouvidos reclamavam e eu me escondia pelo mato no quintal tentando encontrar sacis, príncipes e feijões encantados como os do João. Não temia o lobo mau e sonhava em conhecer branca de neve para avisar sobre a maçã estragada e o veneno. Frutas no quintal, brincar com lama mais tarde meu primeiro beijo numa daquelas manhãs de domingo acanhado. Ah! Naquele tempo nada era tão grave e erotizado como hoje e maus modos, mesmo, era ficar na sala enquanto adultos conversavam coisas de adultos e criança não podia ouvir (até parece...). O que ficou de mais marcante desse tempo a minha memória eternizou. Foi o terno olhar do velho-Vô. Vovô viveu ternura pequenina e ele mesmo era lindinho feito um brinquedo bom com olhos que viam tudo e ao seu redor, olhava em tudo. Ninguém o via ou ouvia. Ele era o Rei no meu mundo encantado e ele sabia do reinado então me olhava em seu sorriso nu. Percebi a despedida silenciosa do meu Rei. Vovô morreu de saudades da vovó e da lembrança de uma vida de ternura em par. Com a morte do meu vô morreram os almoços e os domingos. Mas a vidinha besta e enjambrada em maus modos continuou viva e patética por muito tempo ainda. Nem disfarçaram a indiferença da ausência do meu Vô e até quiseram ver com pressa seu partir. Fecharam tudo com cimento e lá ficou meu Vô lá dentro. Sem ele também fiz silêncio por um tempo mas nunca esqueci seus olhos que falavam só prá mim. Uma cadeira de balanço me acordou guardei os retratos peguei meus sapatos e sai devagar...
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Imagem Google
Texto reeditado
Música: Bolero de Ravel - Pink Martini

14 comentários:

f@ disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 11:26

Sublime este texto de lembranças... ímpar tua forma de encontrar o passado e sentir os afectos... adorei tb escutar o bolero...

Obrigada pela visita ás nuvens... tb vou levar teu link para lá e para o salpicar-te

Beijinhos

Márcio Ahimsa disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 12:07

Sabe, Mai, não sei se esse texto é pura ficção, ou pura realidade tua, mas, para mim, é pura realidade minha, um tanto diferente pelas peculiaridades inerentes a nós, mas, assim, nua e crua, vejo resquícios aqui de uma vida que tive, outrora, com meus olhos de criança, com a diferença que o ator principal não era o Vô, e sim a velha Dona Quelé, minha avó de ébano, que muito me ensinou, muito me conduzio por procissões pela cidade afora em dias Santos, sejam eles de Reis ou não. E a feira que se estendia de sexta a sábado, agora me impregna a narinas do cheiro de fumo de rolo, que ela comprava em rolinhos para fazer seu tão indispensável rapé, que, de vez em quando, me punha um pouco pela ponta dos dedos em meu nariz, para eu espirrar a vontade. E tantos outros ocorridos, tantas outras histórias, que se estendem de Pedro Malasartes aos contos de Saci e Mula sem Cabeça.

Bom, é por essa e outras que venho sempre aqui e me sinto em casa.

Beijos, querida.

Cris Animal disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 13:13

Somos baús....rs
Acervos vivos de emoções, sensações, ensinamientos( pra quem os queira). Acho que isso é vida, né?
Lindo texto.
Ensinamento para quem vier aqui.
beijo
................Cris Animal

SILVANA PEDRINI disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 13:47

Eu não tenho o que dizer... Somente que quando se vai alguém muito da gente com ela, é inevitável... e as tardes nunca são iguais, nem os dias, nem a vida, nada, nada.

Flávia disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 14:26

lembrou a partida do meu Vozinho também, quando partiram tantas outras coisas que eu julgava eternas. Talvez seja nesses momentos que percebemos a transitoriedade não apenas da vida, mas de tudo que compõe isso que a que denominamos nosso mundo.

Beijos, querida.

Vivian disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 19:25

...gostei das propagandas
grátis da Glostora (brilhantina),
e Minancora (santa pomadinha),
que é claro, existe até hoje
nos armários de vovós e vovôs...rssss

Paulo disse... @ 24 de fevereiro de 2009 às 20:23

Cara Mai,

Suas palavras trouxeram a lembrança do olhar terno e puro de minha
avó materna, Ramona, pois dos meus avós foi a que conhecí, saudades
de sua imagem, sensibilidade e ensinamentos, da pessoa maravilhosa
que ela foi. Saudades dessa forma linda de amar!

Raios de sol, querida amiga, você alegrou meu dia!

Café da Madrugada® Lipp & Van. disse... @ 26 de fevereiro de 2009 às 17:47

O que eu acho mais lindo é a pureza das suas palavras. Dá tanta saudade relembrar coisas assim! E por íncrível que pareça no mundo atual... eu acredito em contos de fadas... porque a mesma sensibilidade, amor e sintonia dos contos e das fantasias estão presentes em fatos que acontecem assim em nossas vidas, e em pessoas especiais que nos marcam eternamente mesmo que com uma simples ação.
Porque tudo simples assim, com um poder tão grande de marcar e deixar saudade... é mágica!

E ah! Como eu adoro fotografias e retratos... nos dão uma ajudinha na hora de relembrar. E vivemos os sentimentos gravados de novo. Na mesma intensidade, como se pudessemos voltar no tempo!

:)

Amar sem sofrer na Adolescência disse... @ 30 de abril de 2009 às 14:52

Lindas recordações. Seu texto lembra um porta retrato com tudo que há de mais caro e precioso. Que bom que conheci esse inspirado e delicado texto. Adorei! Abraços.

www.relatosdeumaescritora.blogspot.com
www.manualdoinseguro.blogspot.com
Muito me honraria sua visita.

_Sentido!... disse... @ 16 de fevereiro de 2010 às 06:39

"Mas se eu não for quem sou, quem é que é? Quem me será que sou?"

E eu gosto quando você me diz que ainda se lembra de mim :))
Beijo.

Anônimo disse... @ 4 de março de 2010 às 16:37

Uau, que texto!

Incrível, amiga.

Beijo!

Unknown disse... @ 5 de março de 2010 às 09:16

Incrível e real esse texto.

Mexeu comigo, Mai!


Beijos, amiga!

Não sabia que tinha perdido tanto!

Beijos

Mirse

Unknown disse... @ 6 de março de 2010 às 15:31

Pronto, o passado agora é presente nas palavras, é assim que cultivamos a saudade e cultuamos nossos mortos. Ressuscitamos pelo verbo e por ele soçobramos. Tua narrativa emociona. Cheiro.

blog espiatório disse... @ 28 de março de 2010 às 23:58

meu avô - a pessoa que mais amei - tudo que me traz lembranças dele chega-me como algo perfumado...

obrigada, mai!

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