Inspirar-Poesia, um segundo sopro

campo de origamis

Por Sueli Maia (Mai) em 10/19/2010
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E sobre a mesa dobrar o papel, e um sobre o outro dobrar, e simetricamente vincar com as unhas, vincar e deslizar na dobradura... E com a língua entre os dentes desdobrar. Seda é como pele sobre a mesa, e sobre ela a seda, e sobre ele os dedos que apertam até mais dobrar e redobrar... E sem qualquer pressa abrir [com mais um sorriso] os vincos do papel, e um sobre o outro ainda devagar, redobrar e outra vez e novamente, e só depois de por tantas vezes desdobrar, agitar as dobraduras ritmadas em cordéis, e por fim levitar, como levitam ao vento os cordéis, e como se ali houvessem agora mais que dois, ou mais que mil, ou fosse ali simplesmente, um vasto campo de origamis.
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O Portal cronópios - referência em literatura, editou dois textos de minha autoria, aqui neste link.

O poeta Assis Freitas dialogando com este poema, compôs, aqui , mais um campo de origamis.

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Meus agradecimentos a todos os amigos e leitores deste blog que visitaram, leram, enviaram emails, e deixaram comentários no café literário do Portal Cronópios. Obrigada!

subordinadas orações

Por Sueli Maia (Mai) em 10/13/2010
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Vista lá do alto a serra é como seios de mulher, o homem é imperceptível, e quase tudo se perde no colo da cidade. Úberes com várias bocas nas tetas... [A temperatura baixou em Friburgo]. Um vento frio batia seco no peito essa manhã, mas a cidade fervia espalhando gente de não ter mais lugar. De não ter, como prole de mãe parideira que de tanto ter até confunde o nome dos filhos. Naipe de metais no burburinho, são as gentes no comércio e os sons do consumo que espalha lixo em todo canto. Até bem pouco tempo os helicópteros não costumavam ser frequentes. E por aqui, também era rara a visão da carne crua e do aço exposto nos corpos de indigentes urbanos vestidos com cobertas e despidos de tudo. [A desigualdade é tão feia quanto a face da verdade. A ferrugem consome o ferro, a fome é laica, o crack é um lixo, e o desemprego é tão perverso quanto a dor sem destino que gasta a vida]. "Puta-que-pariu!" - Enquanto um menino fazia malabarismo e recolhia alguns tostões, eu o reconheci a correr da turba. "Corre! Pega!" A violência não é uma abstração ou uma obra surreal, e aquele era o George. O socorro era urgente, e a vida... ah! que vida era aquela? "Ah! Meu Deus! Deus do céu, alguém ajude!" - Mas quem é o responsável quando esse tipo de coisa acontece? E quem é capaz de deter a fúria? "Alguém chame a polícia pelo amor-de-deus" - O mal é permanecer de braços cruzados. Mas o sujeito com o Ipod falou: "prenderam o infeliz". - Certamente não há tecnologia que possa impedir tantas mutilações. A polícia não chegou a tempo de evitar o linchamento que amanhã estampará a página de um jornal qualquer.

"A violência não é uma abstração ou destino,
é um produto consequente. Um resto, um rastro.
É o resultado de contingências e descasos".

rotunda qualquer

Por Sueli Maia (Mai) em 10/06/2010
Há uma voz surgindo do escuro. Há um pano de fundo entre o palco e o camarim. Há uma rotunda qualquer entre o vulto e a meia luz iluminando devagar. Há uma cadeira entre o chão e o teto. Há uma linha entre o linho e o leito a cobrir. Há um texto a ser dito entre o teu nome e toda palavra inaudita. Há uma verdade entre os dentes e outra entre o silêncio e o grito. Há sempre o entre, entre as pernas, o ventre e a luz. Há um abismo entre o ser nada e o tudo que há. Há sempre um blues a cantar entre a bebida e a voz. E entre um texto qualquer repetido, eu ainda te vejo em tudo ao redor. E entre a chama e isto que chamo, hás. E no tanto do nada que é isto tudo que ora sinto, eu chamo o teu nome.
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Música: Oksana Grigorieva - Say my name
Imagem:Google

rascunho hiperbólico

Por Sueli Maia (Mai) em 10/04/2010

O inconformismo é aquele Homem que nunca consegue dormir. Agora não era mais o sonho e o tempo, a palavra e o silêncio, e também não era mais a loucura ou aquela pedra no caminho. Agora era um buraco do tamanho do mundo. O verdadeiro apocalipse bem no meio da avenida. Se o caminho de Santiago começa com o passo primeiro após a escolha da marcha em busca de si, ali estava eu diante de um se, e entre nós um buraco gigantesco. [Ah! se eu tivesse saído mais cedo de casa...] Aquela cratera terrestre era o fundo de um poço e o fim do meu caminho. Pelo retrovisor vi que meu rosto estampava um olhar de desespero e o ar do meu desgosto. - Porque será que nunca se consegue prever quantas horas serão perdidas no caos urbano? [Eu não irei falar de tempo, lugar, ou transporte alternativo]. Aquilo era quase uma hecatombe! O céu que se abriu no chão ou um meteoro que caiu arrombando tudo. Mas sem exagero, dali eu quase via o Japão! E frente ao inevitável restava-me vagar mentalmente, me rasgar inutilmente, ou simplesmente esperar. Aquele abismo era um fenômeno surreal. Aquilo era um céu invertido no chão, e a terra aberta com as vísceras à mostra agonizava. E frente à ela eu me desesperava. [coisa de louco! Eu não cria ser possível um buraco daquele tamanho]. Plantei meus pés no chão disposta a pular, mas entre Dante e o nada, melhor admitir o medo e corajosamente recuar e cochilar dentro do carro enquanto espero.
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Metade do meu dia já se ia e ali eu havia com um buraco na rua e no estômago. Nada de novo para quem pensa em pontes como forma de transpor abismos, [demasiado filosófico, muito dramático e pouco prático àquela altura] mas eu só queria passar e seguir. Ainda pensei em meditar, mas o buraco provocava irritação e minha fome aumentava. [O lado humano foi maior nessa história]. Quem tem trânsito mental cosmopolita com insights em profusão sabe bem como é que fica a cabeça nessas horas: o pensamento não pára à toa, há um caos mental intransponível, então é melhor ter papel e caneta por perto, e por isto eu tenho aos montes. Olhando aquele buraco lembrei muita coisa, tanta gente... [Será que foi mesmo num buraco como esse que ele sumiu? E eu sei lá!] Em todo humano pode haver o tal vazio, que pode ser preenchido com quase tudo e isto seria simples [ou simplesmente complexo]. Mas quase nada o preenche se não houver coragem para viver e existir buscando sentido p'ra vida.
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O buraco, o vazio, e o meu estômago eu já estava preenchendo com o rascunho e uma barra de cereais. Lá no fundo das verdades humanas estão guardadas todas as grandezas, mas também todas as vilanias e pendores. [como não sou nenhuma santa e já estava bem fula da vida, cheguei até a ouvir o estrondo do responsável por aquela cratera caindo ali...] Mas, o mais simples dos preenchimentos dos vazios humanos pode ser a escrita. Quisera uma poesia me chegasse nessa hora. Escrever é dar vazão a imaginação dando voz à personagens. É exorcizar vilanias, é reinventar vida e morte, e esvaziar-se da angústia ou violência - ah!, a violência...Entrincheirar-se na poesia pode abrandar o fel da vida, o mais que é humano ou até sua descrença. [eu tive medo de um assalto]. Mas tudo é mote e história, e pode vir a virar livro [mas o buraco me assombrando ainda estava ali]. Há crimes cometidos com revólver, há outros com palavras ou omissão. Há crimes por humilhação, e há os maus políticos. Tragédia mesmo é o descaso que faz desmoronar comunidades inteiras. Mas o abismo é ameaçador, e eu permanecia presa no carro diante da cratera. Mas eu escrevia sem parar. E se não me apercebi do tempo, percebi que a escrita é uma espécie de ponte sobre a qual transpomos abismos. Os homens da prefeitura chegaram com tábuas, improvisaram uma ponte e os carros começaram a passar. Quase chegando a minha vez, eu concluí este rascunho hiperbólico.
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Texto escrito em fevereiro/09

cênicos rubores

Por Sueli Maia (Mai) em 10/03/2010
A textura macia escondeu os sabores e uma língua restou quente e solta. Rubores na face, a saia era pele e o vermelho sanguíneo simulava círculos de fogo no ar. Tabasco entrando rua adentro e tudo ardendo mundo afora. O corpo estava numa espécie de transe e restava a girar, sem parar. [Bom era poder olhar e inventar sentidos]. Espectadores suspirando em seus lugares enquanto a sombra desenhava um novo contorno que o vento desfazia com frescor. Aroma no ar, almíscar a se derramar nos suores em bicas. Inadequado era palavra descabida porque ela queria e podia voar. Mas, talvez pelo ardor, as testemunhas se abanavam com chapéus e o embaraço. Em cena, rubores e inúmeras possibilidades.
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Imagem : Google
Música: Manassés - Santa morena

a invasão

Por Sueli Maia (Mai) em 10/01/2010
Foi Cristina quem me disse ao telefone: - Zumbis infestaram a casa! É uma invasão de esqueletos. Eles ficam pelos cantos, Caminham devagar e se esgueiram como cobras famintas prontas para dar o bote. Os olhos assustam, saltam como bocas arregaladas. É horrível!
- Eu quis ver de perto o fenômeno. Um deles parecia ser o Júlio. Vinte quilos mais magro e fraco vagava como um zumbi. Os frascos azuis espalhados sobre a pia, e um líquido branco já seco era uma pista que talvez explicasse o sobrenatural. Somente Clara escapou, porque adiou o ritual para depois do carnaval.
- Eles bebem todo esse líquido. Dali em diante todos se esvaem, evacuam, somem e depois reaparecem assim, esquálidos e sem noção. Há sete dias que isto acontece.
- Seis deles eu identifiquei. Manuela era a mais esquelética. Magérrima, não estava feia, mas as bolsas arroxeadas sob os olhos denunciavam uma espécie de privação. O olhar era fundo, desesperado. Pareciam famintos, prontos a invadir ou saquear. Alheia à minha tentativa de contato, Cristina retirou do forno um tabuleiro, e como num desses ataques de abelhas africanas, os esqueletos quase se desmontaram sobre a mesa.

 

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