Inspirar-Poesia, um segundo sopro

rascunho hiperbólico

Por Sueli Maia (Mai) em 10/04/2010

O inconformismo é aquele Homem que nunca consegue dormir. Agora não era mais o sonho e o tempo, a palavra e o silêncio, e também não era mais a loucura ou aquela pedra no caminho. Agora era um buraco do tamanho do mundo. O verdadeiro apocalipse bem no meio da avenida. Se o caminho de Santiago começa com o passo primeiro após a escolha da marcha em busca de si, ali estava eu diante de um se, e entre nós um buraco gigantesco. [Ah! se eu tivesse saído mais cedo de casa...] Aquela cratera terrestre era o fundo de um poço e o fim do meu caminho. Pelo retrovisor vi que meu rosto estampava um olhar de desespero e o ar do meu desgosto. - Porque será que nunca se consegue prever quantas horas serão perdidas no caos urbano? [Eu não irei falar de tempo, lugar, ou transporte alternativo]. Aquilo era quase uma hecatombe! O céu que se abriu no chão ou um meteoro que caiu arrombando tudo. Mas sem exagero, dali eu quase via o Japão! E frente ao inevitável restava-me vagar mentalmente, me rasgar inutilmente, ou simplesmente esperar. Aquele abismo era um fenômeno surreal. Aquilo era um céu invertido no chão, e a terra aberta com as vísceras à mostra agonizava. E frente à ela eu me desesperava. [coisa de louco! Eu não cria ser possível um buraco daquele tamanho]. Plantei meus pés no chão disposta a pular, mas entre Dante e o nada, melhor admitir o medo e corajosamente recuar e cochilar dentro do carro enquanto espero.
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Metade do meu dia já se ia e ali eu havia com um buraco na rua e no estômago. Nada de novo para quem pensa em pontes como forma de transpor abismos, [demasiado filosófico, muito dramático e pouco prático àquela altura] mas eu só queria passar e seguir. Ainda pensei em meditar, mas o buraco provocava irritação e minha fome aumentava. [O lado humano foi maior nessa história]. Quem tem trânsito mental cosmopolita com insights em profusão sabe bem como é que fica a cabeça nessas horas: o pensamento não pára à toa, há um caos mental intransponível, então é melhor ter papel e caneta por perto, e por isto eu tenho aos montes. Olhando aquele buraco lembrei muita coisa, tanta gente... [Será que foi mesmo num buraco como esse que ele sumiu? E eu sei lá!] Em todo humano pode haver o tal vazio, que pode ser preenchido com quase tudo e isto seria simples [ou simplesmente complexo]. Mas quase nada o preenche se não houver coragem para viver e existir buscando sentido p'ra vida.
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O buraco, o vazio, e o meu estômago eu já estava preenchendo com o rascunho e uma barra de cereais. Lá no fundo das verdades humanas estão guardadas todas as grandezas, mas também todas as vilanias e pendores. [como não sou nenhuma santa e já estava bem fula da vida, cheguei até a ouvir o estrondo do responsável por aquela cratera caindo ali...] Mas, o mais simples dos preenchimentos dos vazios humanos pode ser a escrita. Quisera uma poesia me chegasse nessa hora. Escrever é dar vazão a imaginação dando voz à personagens. É exorcizar vilanias, é reinventar vida e morte, e esvaziar-se da angústia ou violência - ah!, a violência...Entrincheirar-se na poesia pode abrandar o fel da vida, o mais que é humano ou até sua descrença. [eu tive medo de um assalto]. Mas tudo é mote e história, e pode vir a virar livro [mas o buraco me assombrando ainda estava ali]. Há crimes cometidos com revólver, há outros com palavras ou omissão. Há crimes por humilhação, e há os maus políticos. Tragédia mesmo é o descaso que faz desmoronar comunidades inteiras. Mas o abismo é ameaçador, e eu permanecia presa no carro diante da cratera. Mas eu escrevia sem parar. E se não me apercebi do tempo, percebi que a escrita é uma espécie de ponte sobre a qual transpomos abismos. Os homens da prefeitura chegaram com tábuas, improvisaram uma ponte e os carros começaram a passar. Quase chegando a minha vez, eu concluí este rascunho hiperbólico.
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Texto escrito em fevereiro/09

26 comentários:

T@CITO/XANADU disse... @ 4 de outubro de 2010 às 17:23

A MANIFESTAÇÃO DE QUALQUER REALIDADE É A ÚNICA REALIDADE, eternamente instável em forma, mas também, eternamente imutável em substância.
Assim é, a poesia imprecisa, confusa,
para um tempo em confusão...

Seria o caos...?
Tácito

Luiza Maciel Nogueira disse... @ 4 de outubro de 2010 às 18:18

fazes uma literatura urgente - literatura como expressão, superação

bravo!

beijo

lula eurico disse... @ 4 de outubro de 2010 às 18:34

O essencial é a poesia.
Mesmo em momentos quase intransponíveis.

Abç

olharesdoavesso disse... @ 4 de outubro de 2010 às 18:39

"Esta é a hora..." Repetia na mente, hora de atravessar o medo, deixar de lado as coisas laterais e deixar a escrita ser maior como todas as faces do mundos... Muito bom Mai! Me senti muito nestas cosntruções. beijos bela, ótima semana e como não tecer verdades agradáveis se é o que me fazes sentir? !

Letícia Palmeira disse... @ 4 de outubro de 2010 às 19:04

Isso mesmo. Gostei.
Volto mais tarde para tagarelar.
Luv.

Unknown disse... @ 4 de outubro de 2010 às 20:00

enfim se fez a ponte, já no meio da travessia - e o elo, a liga, a ação - a lavra

cheiros

Luis Eustáquio Soares disse... @ 4 de outubro de 2010 às 21:57

belo rascunho hiperbólico, mai, porque na vida - e na escrita - tudo é rascunho de rascunho; esboço de esboço, letras garatujas intrusas, com também, corujas, coitadinhas.
b
luis de la mancha

Unknown disse... @ 4 de outubro de 2010 às 22:23

Maravilha, MAI!

Um suspense e tanto, que quase levanto para ajudar a tapar o abismo!


Perfeito!

Beijos

Mirze

Gerana Damulakis disse... @ 4 de outubro de 2010 às 22:36

Não é um rascunho, é um texto sério, importante, que reflete muito bem sobre o essencial. Você é uma pessoa fascinante.

líria porto disse... @ 5 de outubro de 2010 às 09:06

esse buraco é quase como o que senti no peito dia desses... fiquei de olhos fechados de propósito, para não sucumbir...
besos

maria claudete disse... @ 5 de outubro de 2010 às 12:00

"Lá no fundo das verdades humanas estão guardadas todas as grandezas, mas também todas as vilanias e pendores". Querida Mai este conceito gerado num momento crucial reflete bem as características de uma mente que sabe trabalhar a adversidade e mostrar nossas vulnerabilidades. O abismo amedronta , sim, por mais que nos achemos preparados para enfrentá-lo.Beijos no coração.

dade amorim disse... @ 5 de outubro de 2010 às 15:41

Tantos são os vazios, os buracos, as fomes. Verdade, a literatura é uma tentativa de ponte. Aqui, muito bem-sucedida.

Um biejo, Mai.

Ricardo Valente disse... @ 5 de outubro de 2010 às 22:08

Pior que tamo perto de 2012eeeeee (kimedu)
Beijo e ainda bem que tu passaste...

Anônimo disse... @ 6 de outubro de 2010 às 16:59

Benditas as palavras que vêm nos momentos de aflição urbana.

Adorei o texto, não há como não se identificar. Senti como se estivesse lá contigo; ao invés de escrever conversaríamos sobre isso, ou escolheríamos uma música do gosto de ambas para ouvir até a hora de andar?

O devaneio é meu, a culpa é sua, rs.

Beijo, querida.

Anônimo disse... @ 7 de outubro de 2010 às 01:53

un gusto visitar tu espacio.

josé carolina disse... @ 7 de outubro de 2010 às 10:02

Mai! Essa capacidade de emoldurar o universo às encostas de sua pele é a capacidade de nos transformar em você. E é gigantesca!
Um abraço, querida.

via verso disse... @ 8 de outubro de 2010 às 20:38

Somos todos tão parecidos - Este sentir além da conta... Temos o privilégio de tentar, querer, poder - construir pontes. Que texto lindo. beijo!

Nydia Bonetti disse... @ 8 de outubro de 2010 às 21:03

O comentário acima é meu, Mai. Não vi que estava logada no meu rascunho. Beijo grande, bom fim de semana, Nydia.

Iremar Marinho disse... @ 9 de outubro de 2010 às 07:32

Querida Poeta Mai,
Ora, se tudo já foi dito do seu texto mágico, resta-me experimentar a emoção estética, na companhia intelectual destes seus amigos também maravilhosos.
Parabéns e abraços,

Iremar
Seu discípulo (fiel seguidor)

Márcio Ahimsa disse... @ 9 de outubro de 2010 às 12:19

esse aqui, confesso e lembro,
já o li, num dia desses
que minha palavra se esvazia,
e vai, nessa epifania em prosa
e verso, nesses nossos inversos.
inpirar aqui é dar chance à rosa
de se despetalar, e roer meus vazios
e engolir minha sede.

Beijo Mai...

Bom reler o que é ótimo.

Adenildo Lima disse... @ 10 de outubro de 2010 às 12:31

assim como os poemas tudo é improvisos ou rascunhos soltos por aí....

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse... @ 10 de outubro de 2010 às 16:00

" Porque será que nunca se consegue prever quantas horas serão perdidas no caos urbano? "esse caos já está dentro , nas entranhas de cada um, nada mais pode ser nos relevaldo a não só a prisão de vivermos assim sem nós e para ninguém

:.tossan® disse... @ 11 de outubro de 2010 às 02:11

De rascunho não há nada só de poesia que você esconde no texto, mas que todos percebem. Você é um gênio das letras. Beijo

Eleonora Marino Duarte disse... @ 12 de outubro de 2010 às 23:01

mai...



não há rascunho
(...)

ou

talvez só exista mesmo o rascunho e tudo seja experimento e tentativa... mas a vida sendo rascunho na sua percepção com relação ao imenso abismo das emoções humanas é mais emocionante do que definitiva!


belíssimo texto, como escrita e como literatura.

um beijo de fã!

Ilaine disse... @ 16 de outubro de 2010 às 07:05

"Escrever é dar vazão a imaginação dando voz à personagens. É exorcizar vilanias, é reinventar vida e morte, e esvaziar-se da angústia ou violência - ah!, a violência..."

Inspirar poesia: é literatura. Rascunhos perfeitos. Beijo

TERE disse... @ 18 de outubro de 2010 às 22:33

Parabéneeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee Mai.
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