Inspirar-Poesia, um segundo sopro

hotel baviera

Por Sueli Maia (Mai) em 9/30/2010
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De lá até o monte onde ficava o hotel havia algumas quadras. Adormeci de cansaço após avistar o neon. Eu não ouvi qualquer barulho de trinco ou porta se abrindo. O meu espanto foi que eu estava em sono leve e sabia que no atrito do metal com a ranhura da madeira, o fecho produzia no portal um som alto e seco que, no silêncio, certamente teria me acordado. [Há coisas que não se explicam com a razão]. Tudo aconteceu no domingo após o jantar. Eu estava deitada quando, translúcida como uma lente de contato, ela me apareceu. No hotel Baviera era assim, o trânsito noturno não mais me assustava. Vultos circulando nos corredores, e os banais transeuntes querendo falar, se aglomeravam frente à porta. Com Iza não foi diferente:
- Não me sinto tão só e não sinto dores. Estive com Jorge, conversamos com Maximiliano e depois disso tudo, muita coisa foi esclarecida. Elizabeth precisa falar com o irmão, mas é ele quem precisa lembrar de ter cuidado com as águas dos rios, dos mares, lagoas.
[É inegável a precisão sísmica do coração.] - Sentei-me na cama e perguntei: "para quem eu entrego tal recado, afinal?" Já não ouvi qualquer resposta depois disto. Esfreguei os meus olhos (apurando a visão), e como quem vê um espectro, me vi imobilizada frente à desaparição. Totalmente desperta, constatei: nenhum corpo havia ali. Ainda pude ouvir um som alto e seco, e só depois percebi sobre a mesa, um bloco do Hotel Baviera. Lá estava escrito: "com amor, Iza Thereza".
"Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores,
levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles,
levantam-se os homens e suas esperanças..."
(José Saramago)
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Obrigada!
Em qualquer idioma, sempre uma bela palavra.
Agradeço aos amigos que me escreveram ao longo deste tempo.

plural de amarelo

Por Sueli Maia (Mai) em 9/29/2010

Talhado em metros de sol o vestido era um alvoroço. E lá ia ela com uma saia que aflorava calores de véspera. Gema, tequila, e quando se abaixava,  flores de ipê atapetavam o chão. Vez em quando daquele disfarce escapava faísca; é que arisca, a moça tinha um olhar de lançar chamas com iris de citrino que ardia até dourar. Calor na hora certa prá frio fora de hora, e na medida, o vestido com babados de calêndula aquecia as mãos da bailarina. E quando seus braços se abriam em chamas, o que queimava era um par de pernas que se retorcia em nós. Sempre-viva soltando escamas aos pouquinhos e rodopiando em agito, a mulher atirava os panos do vestido como pétalas que caídas do céu se erguiam do chão por moinhos de vento. [Há uma face do fogo que enfeitiça ou que atiça com seu lume serpentino. Esse brilho só arde, não mata, porque é chama ligeira e talvez o que queime seja o tempo de exposição prolongada e não o calor por dentro e por fora]. Um olhar a encarou e um sorriso abriu-lhe o vestido. Mas foi assim que ela o deixou ali, dentro daquele fogo.
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Imagem: Google

medidas, figuras e órbitas

Por Sueli Maia (Mai) em 9/28/2010
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O corredor era um gargalo que após sete metros se abria em curvas e à direita ou esquerda, havia salas contíguas com bancos à porta. São 11:30 no relógio do 25º DP, me restava esperar e registrar a ocorrência. As cenas vinham e se desfaziam enquanto eu me acalmava. No pátio, oito ou nove metros era a altura do muro. Numa das laterais da carceragem, um pastor alemão no canil. Do outro lado, mãos fora das grades. Durante algum tempo o dia 7 de fevereiro foi uma cicatriz em meu pulso direito. Nos engarrafamentos e pelo repouso das mãos no volante, eu a toco. Aquela era a segunda vez que eu e o Lúcio nos víamos em uma delegacia. Quando menino ele era ágil e hábil com as mãos. - Este aqui não é órfão. - Me disseram. - Quase não fala. É comum ficar pálido e desmaiar. - Viera da fazenda dos Mattos. Há seis anos e já formado, me disse que finalmente chamava-se Lúcio de Mattos. O nome do pai - após o processo - constava agora em sua certidão. Visitas começaram a chegar e outros braços se juntaram em acenos nas grades. Percebo um inseto, o bote de uma lagartixa e uma fila de formigas no muro. No jornal - manchetes de mais um crime, estragos das chuvas, campeonatos, fraudes e a economia. Olho meu braço. Eu já havia me cortado em um gargalo. São 13 h e chega a minha vez. Lúcio é o escrivão e digo a ele: naquelas órbitas eu pressentí mais que uma mera cicatriz. Entreguei minha bolsa e ele correu.
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horizontais - diário das ruas

Por Sueli Maia (Mai) em 9/22/2010
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Roncou a motocicleta - são 5:30 - com a entrega dos jornais. E não pelo tráfego, mas pela intensidade, há ruidos peculiares à rua Dr. Joaquim Benevides. Por detrás das persianas e cortinas, mãos, olhos e pontas de cabelos denunciam a astúcia costumeira. - Caiu! - Gritou um. E de seguida, aplausos e assobios foram replicados com uma risada. E noutro grito: - Deitou! -Josete é conhecida por sua fartura. Capa de revista nos anos 90 transita às claras com seus namorados. Um tipo inevitável de mulher, não se importa com o noticiário. No correio da vizinhança, ela e seu Jamil figuram em primeira página. Viúvo há quase dois anos, o vermelhão dono da padaria é farto nas formas e na risada. Do terreno baldio à frente, mais dois arranha céus surgirão. No verão, as folhas da paineira atapetam as varandas, redobra o trabalho e aumenta a campanha do contra. Sobre o seco das folhas, a simples queda de um objeto desperta os plantonistas da Joaquim Benevides. Como o estouro de um transformador após um trovão, o tombo pareceu-me pesado. A risada era conhecida. Horizontais, pensei. Algo caiu e não sei bem por que, mas pensei na Josete, no Jamil e na velha paineira.


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Música - Gustavo Dudamel e Orquestra Simon Bolívar - (Mambo) - Bernstein

oásis...

Por Sueli Maia (Mai) em 9/21/2010
Areal de beduínos, lençóis, e a lenta miragem ondulando em sol posto, era um oásis e tudo aquilo era ele, era eu e era nada que ao mirar, a minha boca umedecia e dos meus olhos choviam brilhantes. Olhos d'água e eu bebia com o olhar as tuas águas e pedia sem falar, vem, mas vem de mansinho, tenho sede. Eu também sou água e sei, matarei tua sede na minha sede até que os corpos cansados tenham força prá seguir. Vês? É um oásis e a certeza de encontrar, beber, fartar e por fim, umedecer uma boca noutra boca ressequida nesse inóspido deserto que por certo, será fértil por nós dois. Marcas, passadas e as pistas deixadas nas dunas eram corpos ondulando um no outro sob o céu que espargia seu lume. Sonho, oásis, miragem e tudo era pouco e bastante prá nós dois. Céu protegendo, és fonte e eu sou água sob o céu de um sol posto. Bebe-me inteira, bebamo-nus e dá-me o remanso, aos goles. E quando as primeiras estrelas cairem no céu dos meus olhos, eu quero teu riso no meu. Vem! Dar-te-ei minhas águas. Então rega essa minha estiagem que é noite. E essa noite é tarde e estou rouca de gritar prá dentro, estou louca por dentro, ardendo também e quero cair em teus braços. Deixa-me morrer, só esta noite, tu és meu oásis e os teus braços me abraçam e me deito nesta cama que é , um areal de beduínos.
Imagem: Google
Música: Ryuichi Sakamoto e Richard Horowitz
Trilha de "O céu que nos protege"

lugar comum

Por Sueli Maia (Mai) em 9/18/2010



A costura sempre fica entre o alinhavo e o arremate,
mas para escolher melhor é preciso estar atenta aos detalhes no avesso do tecido.




Meu voto sou eu que escolho, por isto voto em MARINA SILVA
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"Nada mudará na sociedade se os mecanismos de Poder
que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado
a um nível muito mais elementar quotidiano, não forem modificados"
(Michel Foucault)
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