O inconformismo é aquele Homem que nunca consegue dormir. Agora não era mais o sonho e o tempo, a palavra e o silêncio, e também não era mais a loucura ou aquela pedra no caminho. Agora era um buraco do tamanho do mundo. O verdadeiro apocalipse bem no meio da avenida. Se o caminho de Santiago começa com o passo primeiro após a escolha da marcha em busca de si, ali estava eu diante de um se, e entre nós um buraco gigantesco. [Ah! se eu tivesse saído mais cedo de casa...] Aquela cratera terrestre era o fundo de um poço e o fim do meu caminho. Pelo retrovisor vi que meu rosto estampava um olhar de desespero e o ar do meu desgosto. - Porque será que nunca se consegue prever quantas horas serão perdidas no caos urbano? [Eu não irei falar de tempo, lugar, ou transporte alternativo]. Aquilo era quase uma hecatombe! O céu que se abriu no chão ou um meteoro que caiu arrombando tudo. Mas sem exagero, dali eu quase via o Japão! E frente ao inevitável restava-me vagar mentalmente, me rasgar inutilmente, ou simplesmente esperar. Aquele abismo era um fenômeno surreal. Aquilo era um céu invertido no chão, e a terra aberta com as vísceras à mostra agonizava. E frente à ela eu me desesperava. [coisa de louco! Eu não cria ser possível um buraco daquele tamanho]. Plantei meus pés no chão disposta a pular, mas entre Dante e o nada, melhor admitir o medo e corajosamente recuar e cochilar dentro do carro enquanto espero.
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Metade do meu dia já se ia e ali eu havia com um buraco na rua e no estômago. Nada de novo para quem pensa em pontes como forma de transpor abismos, [demasiado filosófico, muito dramático e pouco prático àquela altura] mas eu só queria passar e seguir. Ainda pensei em meditar, mas o buraco provocava irritação e minha fome aumentava. [O lado humano foi maior nessa história]. Quem tem trânsito mental cosmopolita com insights em profusão sabe bem como é que fica a cabeça nessas horas: o pensamento não pára à toa, há um caos mental intransponível, então é melhor ter papel e caneta por perto, e por isto eu tenho aos montes. Olhando aquele buraco lembrei muita coisa, tanta gente... [Será que foi mesmo num buraco como esse que ele sumiu? E eu sei lá!] Em todo humano pode haver o tal vazio, que pode ser preenchido com quase tudo e isto seria simples [ou simplesmente complexo]. Mas quase nada o preenche se não houver coragem para viver e existir buscando sentido p'ra vida.
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O buraco, o vazio, e o meu estômago eu já estava preenchendo com o rascunho e uma barra de cereais. Lá no fundo das verdades humanas estão guardadas todas as grandezas, mas também todas as vilanias e pendores. [como não sou nenhuma santa e já estava bem fula da vida, cheguei até a ouvir o estrondo do responsável por aquela cratera caindo ali...] Mas, o mais simples dos preenchimentos dos vazios humanos pode ser a escrita. Quisera uma poesia me chegasse nessa hora. Escrever é dar vazão a imaginação dando voz à personagens. É exorcizar vilanias, é reinventar vida e morte, e esvaziar-se da angústia ou violência - ah!, a violência...Entrincheirar-se na poesia pode abrandar o fel da vida, o mais que é humano ou até sua descrença. [eu tive medo de um assalto]. Mas tudo é mote e história, e pode vir a virar livro [mas o buraco me assombrando ainda estava ali]. Há crimes cometidos com revólver, há outros com palavras ou omissão. Há crimes por humilhação, e há os maus políticos. Tragédia mesmo é o descaso que faz desmoronar comunidades inteiras. Mas o abismo é ameaçador, e eu permanecia presa no carro diante da cratera. Mas eu escrevia sem parar. E se não me apercebi do tempo, percebi que a escrita é uma espécie de ponte sobre a qual transpomos abismos. Os homens da prefeitura chegaram com tábuas, improvisaram uma ponte e os carros começaram a passar. Quase chegando a minha vez, eu concluí este rascunho hiperbólico.
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Texto escrito em fevereiro/09