Inspirar-Poesia, um segundo sopro

cerquilhas e sustenidos

Por Sueli Maia (Mai) em 3/24/2010
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No cartaz em cores, três fotografias detalhavam o instrumento. A madeira era imbuia em alto brilho e o móvel parecia em bom estado. Olhando friamente pensei: - um piano não é mais que isto, é apenas um instrumento a serviço da música. A tomar pelo modo como a vi tocá-lo foi possível supor que eu poderia estar enganada. Mais que um piano a negociar, aquele móvel parecia ser um ente. Como se os dedos fossem olhos a mirar um corpo com desvelo, seu toque deslizante trazia bem perto uma garganta ou uma voz. Algo mais sutil que a melodia soou numa linguagem corporal silenciosa. Sem pressa pôs-se de pé frente à banqueta, estendeu o feltro e após mais um afago ao teclado, fechou o instrumento. Assim restou e após um suspiro debruçou sobre o piano, numa espécie de abraço que não abarca, todavia. Mas algo foi contido enquanto um casal examinava com minúcias o instrumento. E entre bemóis e sustenidos os potenciais compradores apreciavam a melodia, segurando uma cópia do anúncio: - vendo piano Fritz Dobbert.



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agrícolas

Por Sueli Maia (Mai) em 3/17/2010

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Em sulcos, a terra se entregou ao lavrador. Como um deus a semear canteiros, o jardineiro soprou esporos, deitou sementes e cruzou espécies em variados tons de lilás. A vida se engendra e fervilha em meio ao humus.
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plurais univitelinos

Por Sueli Maia (Mai) em 3/11/2010
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A alma da noite tem cheiros, sabores e surpresas. E a madrugada é longa ou curta, alegre ou triste como tudo, mas quando o ofício é cantar há na noite o calor de um sol. Eu já havia decidido parar quando Dirceu chegou. Uns poucos casais ainda estavam no bar, me animei e recomeçamos. Parceiro há muito, Dirceu sabe o meu tom em cada melodia e pelo entrosamento, a divisão é uma delícia e invertemos o ritmo em algumas músicas. A comunicação flui entre olhares, sombrancelhas e acenos e se traduz em um repertório que se espalha noite adentro. A música chama memórias, acende os humores, as histórias e os amores. Dirceu sabe a hora de tocar bossa nova e sabe quando é preciso um blues. No escuro do bar se percebe a madrugada pelas mesas vazias como a rua, o que ajuda na acústica. Para minha surpresa chegaram já tarde - Luíza e Lizandra. Muito de mim acompanhou o crescimento dessas duas. Eu sempre soube que Luíza não gostava da noite. Idênticas no rosto, no corpo e na voz, por um ângulo misterioso se consegue diferenciar uma da outra. Mas, enquanto Luíza tem a disciplina dos trens, Lizandra é a mais pura liberdade. Vogais e consoantes, uma flui e a outra contrai. Luíza esteve noiva por anos e Lizandra voltou da Europa esses dias. O garçom serve um vinho e um malte. Luíza acena para mim e o garçom vem vindo com pedidos das duas em dois guardanapos.

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Imagem: Jana Magalhães

também sei falar de amor

Por Sueli Maia (Mai) em 3/10/2010
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Dura mais que um instante o prazer que pra sempre guardarei em mim. A beleza do teu corpo quente, teu cheiro, tua pele de cravo e canela da China, da Índia, do mundo de mim. Dura mais que um instante, toda essa alegria de estar em teus braços e ficar em ti. Dura mais que um instante o interminável momento em que a luz miúda dos meus olhos revela teu riso de gozo que - pluma, deixaste meu corpo e minh'alma. Daí falo baixinho, me escuta, acredita, sou louca por ti. Eu te amo!
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texto reeditado
escrito em dezembro de 2008

a relatividade do lounge

Por Sueli Maia (Mai) em 3/10/2010
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Existe um lugar onde as coisas se assentam sem pressa de ir. Nada a dizer senão ouvir e calar. Vinho, vulgos vultos, vozes. Música ao longe e lounge é um desses lugares em que a pensar ela se demora. Nada a fazer senão esperar ou sumir. Longe não tarda a chegar e ela já está bem perto.
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tímido

Por Sueli Maia (Mai) em 3/10/2010
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Sentado e centrado no centro da sala de um mundo abstrato e real, ele era um mundo de perguntas por fazer. Os blocos eram lógicos, em verde, vermelho e amarelo. Seus olhos azuis eram mares onde barcos navegavam em ares sonhadores de menino. Ele era lento, calado, secreto. Ele era lindo, como o cristal que olhava, tentando decifrar o mundo de cores em tanto pensar. Ele era quieto, mínimo, afásico, em medo e vergonha de se flagrar um menino feliz. Mas era grande em avidez. Seus dedos não paravam de explorar, tocar, pedir. Sua risada era séria, plácida, distante, porque só ele sabia que não podia sorrir. Sua acuidade era extensa, imensa, telescópica, porque só ele entendia, o quanto queria compreender. Ele estava sentado e centrado a brincar. Ele falava p'ra dentro, numa ilha para além do oceano de plutão. Mas os blocos eram lógicos e os seus olhos, azuis. Ele era só um menino e era tímido.
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Imagem Google
texto reeditado

um nome de mulher

Por Sueli Maia (Mai) em 3/08/2010
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Esta palavra tem garganta e voz. Levanta cedo, estica a folha, prende os cabelos, vai. Faz o café, resolve o almoço e sai. Tem coração e é um PC com um HD de um terabite. Um pão com beijo e histórias bem vividas, são quatro Gigas, arquivo bom. São livros velhos. Tem Kerouac, Beatles, montanha russa... Agora corre. O trânsito é lento. Olha o relógio e lembra galos nos quintais de seus avós. Lá vem o tráfego. E tudo passa na cabeça, ela acelera e grita: OLHA O CICLISTA! No som do carro, a voz é bela. Repete a música, desacelera e pára. É o sinal. Agora o cérebro está um caos. Há tanta coisa...é muita coisa! Ela é um dínamo. Um quase velox. Vestindo aço e pedra, o átrio chora e ela sorri, engole o choro e escuta. Fala prá dentro e prende o grito. Sai novamente, e haja pedra e vida. Vai ao cinema, escolhe um filme e chora o dia em uma cena. Mas, chega à tarde, ela é mulher e sangra. Sangra suas guerras quando se cala. Mas tudo sara e beija o homem. Disfarça o dia, relaxa o corpo e limpa a pele em banho e espuma. Agora desce, esquenta a janta e ouve a outra voz. Lembram dos filhos e da família. Agora lava com detergente biodegradável, e seca a louça, as mãos e o dia. Agora o grito. E em silêncio essa garganta escreve e elabora a sanidade da loucura. Arquiva tudo e limpa as teias. Agora o espelho, um hidratante, ela respira, solta os cabelos, ama. Esta palavra tem um nome e vive. Eu minto! Minha garganta, não. Hoje é domingo.
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texto reeditado

átonas

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
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Mais um dia se foi e a palavra não veio. Fora do eixo, não era apenas a terra que tremia.
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o milagre

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
O fogo crispava na fogueira que aquecia o inverno. E entre o vapor e a chama, um halo pairava no céu e dava à noite, a mística de uma anunciação. E lá vinha ela coroando em seu nascer. E quando nasceu não chorou. Rompeu o escuro com a luz e rasgou o silêncio, com a risada mais gostosa desse mundo. A parteira se espantou com a desordem e em arrepios, caiu com a menina nas mãos. O espanto na face, ninguém respirava, mas a menina, continuava rindo. Essa foi a primeira noite em que ela escapou de morrer. E via coisa, ouvia vozes e falava com gente do outro mundo. E não morreu por descuido, na noite que tropicou na beira da fogueira. Era fraquinha, coitadinha e era branquela. – Se alimenta de vento essa menina. - dizia dona Áurea, a beata da igreja. Ela espalhava que Clarice era Santa e se benzia quando via a menina. Seu Alfredo, o barbeiro fofoqueiro, era outro que dizia que Clarice não vingava, porque ela via alma penada. E teve o dia que ela caiu, dura e tesa, ao chão. E gritaram: - corre minha gente, acode meu povo, a santinha morreu! Flores enfeitando, velas acesas e a menina, um anjinho, tão lindinha, com os olhinhos abertos. De repente, prá espanto do povo, Clarice se sentou e caiu na gargalhada. Um estatelou-se ao chão. Outro ficou duro. E todo resto do povo do velório, correu. E nem se sabe quanto tempo, durou aquela morte. Só se sabe que esse foi o último dia em que Clarice escapou de morrer. Nesse dia, a menina da risada engraçada, ficou conhecida como – o Milagre.
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Arte: Tarsíla do Amaral

Ícaro implume...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
Ele era um homem sem maldade ou expressão. Ele era ingênuo. Uma criança velha, carente de gente pela vida afora, sem pressa de crescer. Um sexagenário sorridente que não sabia mentir, mas tinha vergonha de tudo. Desprovido de beleza, padecia o escárnio dos homens bonitos e viris. Entre velhos viveu uma infância muda e distante de afeto. Cresceu solitário como uma ilha perdida num imenso oceano. Os sulcos em sua pele revelavam os anos idos e mal vividos. Seus cabelos pareciam a crina de um corcel e sua face avermerlhada compunha a estranha feição que o destacava por onde passava. Jair chamava a atenção porque para além, vestia-se como se todo dia fosse carnaval. Sorriso largo e nu mostrava a face ingênua de uma criança. Alheio à tudo, não destinguia calor ou frio em cada estação. Adoecido Jair relatara suas memórias. Disse que houve um tempo em que pensava ser um animal. E após um dia inteiro pensando e olhando os bichos, sentiu a estranha vontade de morder troncos em um bananal. Como se fora um cão, tão logo o dia e a criação deitaram-se com a noite, soltou seu instinto animal e raivoso, mordeu todos os caules ao redor. Sua boca ardia e doía mas a fúria incontida, libertara de Jair, o cão. Depois quis ser pássaro bater asas e voar. Subiu a colina rente à cerca de cipreste e margeando a divisa,subiu até o topo. Bem lá do alto onde avistava miúda, a casa de taipa, mirou o pouso, bateu os braços como asas e trissando qual pássaro, decolou. Quedo, em instantes colidiu ao chão. Com a pele rasgada e as asas quebradas, Jair não foi cão ou pássaro. Jair não foi homem pois não conheceu mulher. Jair era ingênuo. Um Ícaro implume. Jair era humano e sorria, sempre.
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Imagem Google

lembranças de domingos - a cadeira...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010

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Encaixotava e enlaçava seus abismos e lá ia de presente para o mundo aquela bomba, pronta para explodir. A água que se bebe é sempre a mesma e a ingenuidade é uma criança privada de gente por toda vida. Quando era menina eu cria que o mundo era um lugar bem longe de mim ai criei o gato de botas e um País de maravilhas. Alice foi morar no mundo e eu fui prá São Paulo, ingênua e desacostumada de saudade. Mas se eu não for quem sou, quem é que é? Quem me será que sou? Eu resolvi fazer faxina e achei a caixa de ‘retratos’ em branco e preto. À rua consertar sapatos saímos eu a bomba e sua angústia regressiva de saudade. Achar sapateiros em São Paulo carece sorte, muita agulha e um palheiro... Em Santo Amaro encontrei um com máquina, banco e um periquito a sujar tudo e me pediu para esperar. A sinfonia do lugar lembrou meu vilarejo e assim peguei o amarrado de ‘retratos’ e vi o filme do Tornatore, outra vez. Cada amigo de infância era um sorriso e a risada escangalhada era a lembrança de alguns tombos.
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Ai achei meu Vô na cadeira de balanço. Hoje eu penso que amar faz bem porque faz desejar compreender o outro, ser tolerante e ter vontade de ser e de fazer feliz sentar junto e conversar. Cuidar do outro é tudo que se quer e eu amava aquele meu Vô lindo com o cabelo bem branquinho... Mas não deve ser coisa de Deus ou dos deuses esse negócio de desprezo e menosprezo... É coisa de gente, mesmo. É coisa do humano desprovido de humanidade mesmo. Ai botar na conta de deus a crueldade que se faz, é sacanagem e aquela foto me lembrou o que faziam com meu Vô naqueles dias...Nem sei por que lembrei tão claramente o que passou naqueles domingos que de engraçados éramos só eu e o meu Vô (porque o resto era um inferno). Pensando bem foi meu nariz que acendeu minha memória. O cheiro daquele lugar levou o tempo narina adentro e prá bem longe lá bem dentro de um tempo e aquele tempo voltou de uma só vez... Era tanta náusea que eu sentia com o cheiro enjoativo do talco e do leite de rosas, naftalina e brilhantina ‘Glostora’ nos cabelos com ‘marrafas’ segurando rococós e a pomada ‘Minancora’ cobrindo a espinha do nariz... A Cadeira de vovô era cativa e balançava sem parar. O exército invadia meus domingos e o horror tomava conta do sítio com primos, tias, periquitos, papagaios, cachorros, (os cavalos eram eles à mesa) e toda bagunça do mundo se fazia em um só dia. Muita comida, bebida, copo que caia, criança que chorava e comadre que gritava e haja requinte. Alfredo disputava os ossos com os cachorros que rosnavam e ele a infernizar o bob aos pontapés mostrando o osso pro pobre do cachorro babar até morrer...
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Loucura mesmo era a lascívia dos gatos que roçavam as pernas roliças de tia Cândida e Alaíde solteironas beatas-vitalinas, cheias de pudor e falsidade que diziam jamais se casariam pois nem queriam e homem algum as merecia ou seu amor. Finas e requintadas, jamais, lavariam cuecas (e nem seriam roçadas às pernas a não ser pelos gatos tarados de madrinha). Mas falavam mal de toda cidade com olhos e bocas que torciam à direita volvendo à esquerda a condenar aquilo tudo que não lhes fora possível fazer com os homens (mas que dava prá ver, que bem queriam, pelo frenesi com que tremiam em ais e uis pedindo ao tio mais linguiça...) Eram as tias mais donzelas e pudicas de araque, sedentas e safadas que só vendo. Via-se no frêmito do tronco e sob as saias se calculava que a lascívia e o fogo às levaria direto ao confessionário (ou ao inferno) na próxima missa, e haja penitência... Rezavam terços usavam véus e, castas, qual ‘Geny e o Zepellin’, usavam calçolas (super sexy) feitas em puro algodão dos sacos de açúcar aproveitados e reforçados em costura dupla e de tão grande seus traseiros, boatavam os fofoqueiros vingativos que, de costas, em suas nádegas todos liam o rótulo: [IRMÃOS PRIMO S.A. - AÇUCAR UNIÃO] (não sei por que tanto zelo, mistério e apego àquela altura da vida). Aos domingos sempre a mesma algazarra com bocas se entupindo de frango, macarrão e farofa que se espalhava pelo ar no descuido ou descontrole da risada (um teatro do absurdo).
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Menina e muito quieta eu nem me incomodava, como hoje, com toda aquela finesse e discrição coletiva. Aquilo tudo era patético que só vendo. Meus ouvidos reclamavam e eu me escondia pelo mato no quintal tentando encontrar sacis, príncipes e feijões encantados como os do João. Não temia o lobo mau e sonhava em conhecer branca de neve para avisar sobre a maçã estragada e o veneno. Frutas no quintal, brincar com lama mais tarde meu primeiro beijo numa daquelas manhãs de domingo acanhado. Ah! Naquele tempo nada era tão grave e erotizado como hoje e maus modos, mesmo, era ficar na sala enquanto adultos conversavam coisas de adultos e criança não podia ouvir (até parece...). O que ficou de mais marcante desse tempo a minha memória eternizou. Foi o terno olhar do velho-Vô. Vovô viveu ternura pequenina e ele mesmo era lindinho feito um brinquedo bom com olhos que viam tudo e ao seu redor, olhava em tudo. Ninguém o via ou ouvia. Ele era o Rei no meu mundo encantado e ele sabia do reinado então me olhava em seu sorriso nu. Percebi a despedida silenciosa do meu Rei. Vovô morreu de saudades da vovó e da lembrança de uma vida de ternura em par. Com a morte do meu vô morreram os almoços e os domingos. Mas a vidinha besta e enjambrada em maus modos continuou viva e patética por muito tempo ainda. Nem disfarçaram a indiferença da ausência do meu Vô e até quiseram ver com pressa seu partir. Fecharam tudo com cimento e lá ficou meu Vô lá dentro. Sem ele também fiz silêncio por um tempo mas nunca esqueci seus olhos que falavam só prá mim. Uma cadeira de balanço me acordou guardei os retratos peguei meus sapatos e sai devagar...
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Imagem Google
Texto reeditado
Música: Bolero de Ravel - Pink Martini

capita, verba, vinum...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
Sinais de perigo em fobia visceral. Estímulos aversivos e as mãos frias e suadas despem as sísmicas urgências em um líquido corpo nu. Músculos afrouxam descongelando a luta contra a esfinge. Olhos de espanto e na penumbra, uma palida face em fuga. Incólume a bailarina anuncia o espetáculo. E um corpo cataléptico sem esfincter ocupa-se em morrer frente à TV. Eis a - Panis et circenses...
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Imagem Google
Música - Marisa Monte - Panis et circenses
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