Inspirar-Poesia, um segundo sopro

as imagens

Por Sueli Maia (Mai) em 1/30/2010
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Ali o trabalho era minucioso. Com a porta principal ainda fechada, os sons se amplificavam. Passadas e pancadas ecoavam causando incômodo. Por onde entrava, o vento juntava sobre o gesso, o pó e o sombrio. A limpeza das peças sobre o mármore parecia mecânica. Seguras às mãos, estávamos distantes daquele pensamento. Mistérios instigam e desafiam os limites humanos e quanto mais denegada, mais a fé se reafirma no inexplicável de pequeninas coisas. Sobre os meus olhos os afrescos e os vitrais que a clarabóia iluminava. Sob eles, os bancos e outras imagens que se perdiam no silêncio e na contemplação das horas. Ela chegou logo cedo e como sempre flexionou os joelhos e ao passar entre as fileiras, ergueu o olhar, com a mão direita gesticulou um sinal e sentou. - Me ajuda! - Foi o que sussurrou ao olhar-me no alto. Daqui eu ouvi, mas também pude ver que ele - pela porta lateral - entrara, imperceptível às demais. Há instâncias que entre o instante e a eternidade perscrutam, invisíveis. Tomou-lhe pelas costas e disse baixinho: - vem cá, aqui atrás é bem melhor... - Por trás da coluna o que vi foram mãos às coxas, assim que ele levantou-lhe o vestido. Antes que o sino tocasse, ainda ouvi-lhes a respiração e entrecortados, os gemidos e as juras de amor. Aberta a porta ela se recompôs alinhando o vestido. Ajoelhou-se, cobriu-se com o véu e novamente se benzeu. Soprei-lhe no ouvido. Fitou-me e entre dentes disse: – estátuas não falam! Mas caminhei junto a ela até o confessionário.

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música: Mozart
imagem: Google

indeléveis

Por Sueli Maia (Mai) em 1/28/2010
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Ali entre a pele e a folha, em meio ao sopro e a queda, entre o que está e o que se move, ficamos, estamos, seremos.

hibridos dictos

Por Sueli Maia (Mai) em 1/28/2010
Eleodora alternava seus gestos e humor. Entre o selvagem e o suave, ela era híbrida na mescla das raças que deixaram-lhe herança nos olhos e o indefinido da cor. E mesmo farta das mordidas a doer-lhe às coxas, permanecia vivendo entre os bichos. Na cadeira a balançar ouvia Bach. Quieta, olhava estrelas e enquanto chorava, bebia. Mas se os seus olhos miravam o nada, uma volição quase explícita movia-lhe as mãos ao afagar os pelos do gato em seu colo. Os pés a roçar, acalmavam o cachorro que parecendo excitado se erguia. Esse pequeno espetáculo era encenado todas as tardes e talvez fosse um engodo provocativo aos homens que trabalhavam na construção à frente. Mas poderia ser um delírio o que era comum aos amantes etílicos. Eleodora bebia e delirava e seus olhos transgênicos prenunciavam um cio e com códigos híbridos ela deixava escapar seus devaneios. - Quem sou, que língua eu falo e a que reino pertenço? Gosto de falar sozinha e com as outras e não para me vingar mas para selar o misterio é que eu falo, também, com os bichos e por vezes me entrego aos instintos. Inquietas em mim, a santa e a gata que roça e ronroneia pedindo o que quer. Alimento-me com leite, é doce. – Ela continuava hipnótica com as mãos sobre o gato. E num repente o gato escorregou por entre as pernas e ela despertou e percebeu o seu vestido sem botões até a altura das coxas. Ao seu redor dormiam um homem e os outros bichos. Olhou-me e disse: – Sou híbrida e selvagem. Fitei-lhe os olhos que mudavam numa cor diferente.

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Arte : Mason




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eufêmicos

Por Sueli Maia (Mai) em 1/26/2010
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Como velhos parceiros nos reconhecemos e nos comunicávamos pelo olhar. Márcio era impulsivo e no fazer das horas era um general de feitio cuja única disciplina era o trabalho que era elo, mundo e sina. Um anarquista com vícios que não combinavam com a persona sisuda que interpretava gestualmente. Gago e talvez por vergonha era econômico ao falar. No ir e vir dos dias disfarçava bem os seus desvarios. E ainda era maniento e obcecado por ser autoridade. Quando o vi pela primeira vez ele estava em apuros e desde então seguimos juntos com pouca fala, muita culpa e olhares de cumplicidade. Tão efêmero quanto vital, o gozo rebaixa a tensão num instante. Dolores e eu o esperávamos costumeiros para a reunião em casa de Alice e Pedro. Não há recomendação capaz de frenar um impulso. Estranhamente a sua gagueira desaparecia após a segunda dose e quando desandava a contar estórias e andanças quixotescas e reais, seu tom de voz sobressaia. Naquela noite algo parecia mais tenso e porque chovia estávamos todos muito próximos a ouvir e gargalhar sobre almofadas. Senha proibida - Alice o desafiou. A excitação potencializa a força do homem. De modo estranho, Márcio pulou do chão ao teto e agarrado ao lustre ficou com as pernas em pêndulo e até parar, todos gritavam: - vai morrer! Márcio vociferou: - Domingos suba aqui! - Olhei prá ele, ergui os ombros e as mãos. Descontrolados, Pedro e as mulheres se entreolharam e ele se apressou no comando: - venha Domingos, agora! E Dolores perguntou chorando: - quem é Domingos, Márcio? Só estamos nós quatro aqui!

Música: Asa Branca - Vitor Araújo.

recapitulados

Por Sueli Maia (Mai) em 1/18/2010
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Vão como voltam as ondas, os ventos e assim como o tempo, a história retorna recapitulada. Estrondo, escombros, silêncio e dor recorrentes nos ciclos. Reincidem os raios, os fachos, os feixes e em meio às fendas renasce alguma esperança. Há ditos, adictos, há ecos, há mãos e do inesperado - o amor...
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Imagens Google:

hiatos oníricos...

Por Sueli Maia (Mai) em 1/17/2010
Sons de flauta esvoaçando os cabelos, e a aurora caminhando sobre a areia era eu - líquida, fruida, hiante, em tons de azul. Dia acordando indolente em outro oceano, com lábios de luz e sopros de um novo sabor. Hiatos oníricos, acesos e esfomeados a espera de um beijo na primeira manhã. Algas famintas engoliram as bocas de outras bocas, apenas, com a posse dos olhos. Austro, tudo fruindo entre as fendas, porque o tempo não se retém. Pálpebra aberta, é a fresta de luz que acende na porta enquanto o silêncio, se desfaz em sorriso.
Híbridas, palavras pulsando no écran seus sonhos. E um sopro de luz caminha descalço seus nus, ardentes, famélicos a procura dos beijos, na emulsão d’areia, em muitas manhãs...
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Arte: Candido da C. Pinto
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observatório do mundo

Por Sueli Maia (Mai) em 1/17/2010
Ouvia notas e lia signos tentando tocar a sinfonia. Sinfonias são como pedras preciosas e o que são os diamantes? Diamantes não existem no céu e o céu sem poesia, também não é azul. Os dias de inverno na arte poética têm sol de calor diferente e o inverno sem arte é frio e igual. Sonâncias poéticas vibram em todos os sons e modulam, variando os tons desse mundo e o mundo apoético não muda, não é alto ou baixo, alegre ou triste, claro ou escuro. Permanece no escuro como todos os últimos dias. Garimpos tem veios d’água e o garimpeiro sonha encontrar diamantes de dia e de noite e sonhando, alucina diamantes artificiais. Artifícios são usados para enfeitar fantasias onde as vezes se vê o que se quer ver e, do observatório do mundo se vê, que a emulsão da retina nos olhos brilhando, também são diamantes de água, na luz. Essa sinfonia foi escrita em entrelinhas e enquanto observava o mundo, eu fingia tocar diamantes...
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Arte: V.Rubel

ossos e ofício...

Por Sueli Maia (Mai) em 1/16/2010
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Ossos são sonoros, guardam códigos e sorriem em seu chacoalhar. E a vida se renova na alegria nossa de cada dia. Então lembra a melodia dos meus ossos e não olvidarei os teus. O riso dos ossos estala no silêncio dos acordes do sacro dos humanos. Lembra. Porque a noite amplifica os gemidos e sussurros em meio à madrugada. Lembra que em meu esterno, ílio, púbis, guardei-te mil vezes, chorando meus risos em mortes de amor? Lembra que em tua face inscrevi meus infinitos e em meus braços acolhi teus desejos? Mas o silêncio na distância se fez grande e adulto, emancipou-nos. Em arquipélago, península ou cordilheira estivemos nós. Em nossos ossos, o corrimão da vida. Espero que um dia a janela complacente dos teus olhos lembre os sorrisos que quando exausta sussurrei: Shhh... eu te amo... Espero que algum dia tu entendas que em meus olhos, por anos, guardei em sorriso, o brilho deste amor. Meus ossos guardam equilíbrio e minha sustentação. A areia chia sob os artelhos. O vento cochicha aos meus ouvidos e eu caminho à beira mar porque estou só. Mas não esquece a melodia dos meus ossos porque eu pressinto o corpo solto de nós dois. Estou descalça e à minha frente o horizonte pede um grito. A vida é mais que eu, que tu ou nós. Há anos, em ti eu escrevi meus infinitos. Meus ossos e o ofício, meu sorriso e minha alegria estão aqui novamente.
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Música: Marina Lima - Não sei dançar e Ivan Vilela - violas
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matriarca

Por Sueli Maia (Mai) em 1/16/2010

Pássaros são Homens alados. Sensíveis ou não machucam-se um dia. Homens são pássaros implumes. Sensíveis ou não, um dia, também choram suas dores e solidão. Árvores aninham pássaros e homens, sensíveis ou não. Em seus troncos inscrevem amores de um e outro. Homens entalham em árvores nomes e corações enamorados. Nos galhos e braços, os frutos, a vida e o abrigo a ambos. Árvores maduras são solitárias. Repletas de vida alimentam amores, Homens e pássaros.
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Telaviv, cartas e letras...

Por Sueli Maia (Mai) em 1/16/2010
Telaviv nos postais e mesmo à distância te vejo bem perto. Aqui, muito já ficou para trás e tudo está longe. A cerejeira no quintal está florindo e os primeiros beija-flores disputam - no ar - a florada perfumada. Há tempos não sentia a calma de hoje. Dias agitados com noites maiores que as horas silenciosas do inverno. Somente agora que todos se foram, consigo escrever. Ah! amiga, que saudades de te ouvir e poder falar contigo! Mas ainda não será desta vez que nos sentiremos no abraço que guardo e que - sempre, me faz sentir-te ao meu lado. A lealdade dos amigos de infância e a velha troca das figurinhas dos álbuns da infância, agora, são blogs com postagens ilustradas com animés digitais. E somos modernas. E assim como tu, eu também compreendí que a paz é o estado de sentir e, sem correr, a paz é simplesmente abandonar coisas perdidas no tempo. É seguir, sem olhar para trás. Bem que dizias que as coisas do enternecer poderiam não tem fim. Mas sabes bem, Ema, querida, meu coração é um perfeito rendez-vous de um amor anarquista que ama, que me faz amar o mundo e que me deita e me deixa sem roupas, mesmo quando é inverno. Ah! Telaviv. Isto é um sonho, Ema, mas ainda irei abraçar-te, amiga. Domingos caminha ao nível do mar, ah! o mar que a tudo acalma e espanta... É um bom alquimista, acredita, não tem pendores de alpinista e prefere os peixes e as ondas do mar a tocar-lhe os pés. Aqui despeço-me, Ema querida, pois já é madrugada, há frio lá fora e hoje eu desejo sonhar com Telaviv. Beijo você, com amor, eu.
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Imagem Google
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canções do mar e ciclos...

Por Sueli Maia (Mai) em 1/11/2010

Sol declinando poente em sussurros de um mar de abril. Canções de espumas miúdas, quebrando n’areia, molhando meus pés, coxas, vestido... Traços, limites de enchentes e os ciclos lunares na páscoa. Peixes que escapam das mãos, na pressa da pesca, nos veios d’areia onde pisam meus pés. Marés outonais são águas que espraiam e enchem meu corpo, oceano, nos ciclos de renovação. Shhhhhhh...É o sussurro dos ventos e águas, nas marés do meu coração.

Imagens de hoje - fotografia: SMaia

um conto de um conto de rés

Por Sueli Maia (Mai) em 1/11/2010
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A cama estava desfeita. Ao chão, os adornos e as roupas se empilhavam e sobre a mobília, apenas uma toalha em desalinho. Os cacos de vidro restavam espalhados rente à parede oposta aos móveis. Quando enfim decidi atendê-la, encontrei-a de pé. Ainda se via beleza naquele desleixo. Os longos cabelos ensejavam pentear. Há um estado de humor que afeta os sentidos. Em meio à desordem andava de um lado ao outro e parecia esperar. Minutos de silêncio eram rompidos por soluços e tosse que entrecortavam a respiração. A obsessão turva a mente e ensurdece. Não percebeu a minha chegada e porque subitamente olhava para os lados e para trás denotava pressentir, além de nós, outra presença. Vez outra esfregava o peito e afagava o retrato que mantinha em abraço. Se era o mesmo da parede ainda era moço e era sério de feição. Ao serviço eu já estava acostumada mas, porque demorava, a agitação aumentava e eu me entretinha a observar os detalhes da casa. Os cheiros entranham - mais na madeira e nos livros. Esse bordado largado sobre a mesa fazia concluir que o tempo, ali, não havia seguido. Tudo é mais fácil quando se está preparado a abandonar. O meu tempo era outro e para seguir, faltava ela terminar, se despedir. Mas quando eu a encarei nos olhos, o porta-retratos caiu, ela gritou e lutou, mas eu a peguei de jeito.

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retrato calado

Por Sueli Maia (Mai) em 1/07/2010
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Se do acaso chuva fêmea fez ocaso, macho é o crepúsculo de uma dor. Há os que não seguem com a vida há os que ficam e não mais sentem e há os que vão e são eternos. Mas mesmo assim a vida segue porque certeza é que o sol sempre virá. Porém do verbo uma poesia espreguiçou, um sol em noite deu a luz e um olhar acabou por sorrir. Mãos trazem vida, laço quer fita e mãe de letra é mão e do lácio da flor derradeira escrevo e retrato feição. E tez de verso é voz de uma aurora delicada e o colosso de um parto é o colostro que boca em seio a sugar faz poesia e leite dá vida e é linda! Tão linda é Lavínia! E portanto eu canto este dia ou por tanto eu apenas gaguejo poesia e goteja um sorriso que se abriu com a luz que neste dia acendeu. E tudo freme e unto-me em fio de azeite e a chama flamba e deixa aroma e o sabor desta língua que - bruta, escrevo em retrato calado.

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