Inspirar-Poesia, um segundo sopro

a linha do equador

Por Sueli Maia (Mai) em 12/31/2010
Latitude zero.  Linha divisória. O meio do mundo é um lugar imaginário,  mas há um totem na linha do equador e me disseram que aqui eu poderia pisar simultaneamente os dois hemisférios.
Estou em Macapá, literalmente no meio do mundo. O rio amazonas é um gigante com cara de mar que banha esta cidade.
Olhando este rio eu pude perceber, ainda mais, a minha pequenez. 
Mas o dia de hoje é também uma espécie de linha divisória, porque amanhã despertaremos em um novo ano.
Gostaria de agradecer a todos que estiveram aqui e desejar um 2011 bem melhor e pleno em paz.




temporárias

Por Sueli Maia (Mai) em 12/17/2010
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A memória ergue o tempo
Sucessão e engano é a rotina do relógio
O ano não é menos vão que a vã história
(Jorge Luiz Borges)


De Roosevelt a Obama os sacos de folhas pesam tanto quanto cortiças e rolhas, mas há algo que se repete no espiral do tempo e muita coisa se acumula nos espaços. Vazios consomem novidades e o consumo desemboca na fatura do cartão que, em outros janeiros, desaguará com juros e noites insones. Insumos são elementos importantes e se a fusão é uma questão de temperatura e tempo, a transformação é poder perceber o valor da diferença. Não sei se o tempo já é gasto em si ou se o tempo hoje é novo e - outro, ele é gasto de maneira diferente; não sei se já não há mais tempo ou se cada um tem seu tempo e assim tudo isto que consumo e me consome não é o tempo mas sou eu. Não sei se por isto, tanto o tempo quanto o encontro nada vale ou vale tudo... Mas eu tenho o costume de juntar o velho e o novo e em meio a tanta inovação, eu nunca soube responder porque os homens deixaram de usar chapéus, porque é tão difícil encontrar um toca-discos pro vinil ou porque são tão raros os relógios analógicos se a impaciência é digital. Mas mesmo assim eu vibrei com a invenção do wikileaks e apesar disto eu sonhei com Obama e disse pra ele que o maior pesadelo seria repetir o final dos anos trinta. Porque eu ainda tenho mãe, e os meus filhos e netos precisam viver. Talvez por isto não vejo problema se hoje os rapazes usam calças coloridas ou se algumas moças trocaram as calças apertadas por folgadas enquanto outras voltaram a usar renda. Pessoas transitam seus jeitos e cheiros, sujeitos circulam querências e impotências, e nesse ir e vir as etiquetas temporárias ainda existem, e por baixo ou por cima o ter ou o ser é tudo que existe no cerne da questão. Ergo montanhas de folhas e o barulho que faço é o mesmo que fazem os coelhos e lagartos quando esgueiram sobre as folhas nos quintais, e nesta espécie de árvore natalina feita apenas de folhas, eu recolho num abraço cada nome, porque palavras o vento espalha.
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Um bom natal a todos
Obrigada por estar aqui todo este tempo

a invenção de um purgatório

Por Sueli Maia (Mai) em 12/09/2010
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O presente está só...
...Entre o amanhecer e a noite
existe um abismo de agonias, luzes, cuidados;
...O hoje fugaz é tênue e é eterno;
outro céu não espere, nem outro inferno
(Jorge Luiz Borges)


Quisera ter mãos e boca e língua àquela imagem, mas correm rios sob a minha pele e ainda há vastidão e mistérios, legião e fantasmas que me sopram coisas que eu nem ousaria dizer; por tanto perdoe o que escoar mais espesso das veias desta minha humanidade. A pressa de dizer reclama urgência de pensar, mas eu sempre esqueço dos detalhes da diplomacia. O fac-simile nunca funciona comigo e foram muitas as vezes que eu me destrambelhei sem pensar. Purgo pequenas mentiras e pequenas verdades. Então antes que seja tarde escreverei claramente: te amo. E na maioria das vezes me acanho em dizer; e quando vejo o dia se foi os meus olhos continuam nus e minha boca continua vestida de silêncio e pudor. Não importa do que é feita a coisa, mas para quê ela serve e o que nela cabe; e tudo cabe nessa coisa que é viver. Então ainda que eu morra a cada minuto e que uma palavra me falte ou transborde, cá estou. Verso você enquanto estou só. E se o meu céu, meu inferno, meu presente, meu bem e meu mal também é você, eu inventei de fazer destes versos o meu purgatório enquanto te espero.
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tecnológicas

Por Sueli Maia (Mai) em 12/04/2010
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O amor é essa luta interminável
onde a idéia de bastante
é bastante inoportuna nesta época


O fogo apressa o tempo e ciclicamente o tempo se vê, não nos relógios digitais, nos movimentos e momentos onde as fomes e sedes se esbarram e ninguém se entende em seu querer. Mas entre o cru e o cozido, Juan continuava a comer as suas saladas franzinas, Michel preferia marinar todas as carnes; e avinagrados - João e Maria, continuavam engolindo os congelados e seus malabarismos. Dissabores se descartam onde se compra sabor, e mesmo exaustos de tanta fome e desencontro, Hélio e Júlia, Bruno e Bia trocaram torpedos e se encontrarão depois do shopping, no churrasco, onde todos se olham, se esnobam e confraternizam.

prelúdio de um blues

Por Sueli Maia (Mai) em 12/01/2010
“Só para nós não morre aquilo que morre conosco”
(Gabriele d´Annunzio)

No vão das horas os dias me escapam, mas sigo. Tendões e fibras e pele seguirão comigo, porque eu sempre teimo em seguir. E seguirei; como seguem todas as coisas que ocupam o lugar de outras coisas as quais se perde por aí. Eu sempre perco. [E engulo o choro ao perder].  E mesmo se jaz viver em vão, não me exaspero em saber, eu bebo um blues. Porque a hora não chega antes do minuto derradeiro. E afinal tatuarei mais uma palavra sob meu vestido e em largos goles de azul levarei comigo as linhas desse meu silêncio.
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Inspirado no vídeo: Carlos Barreto Lokomotiv - salada 2
Outro texto aqui
Ao Artista Plástico e poeta marco Antônio, muito obrigada! dedicou-me um poema aqui 

apóstrofe para olhos, abelhas, tigres et cetera

Por Sueli Maia (Mai) em 11/19/2010
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"Viver... bom, viver o senhor já sabe: viver é etcétera"
(Guimarães Rosa)


E tu, ó minh'alma, onde estás? Acaso andas a espera da aniquilação? Questão sensível - o ar entrava com o sol, janela a dentro, e silenciosamente o mundo e a fúria era eu e uma abelha a me atordoar. Arapuá - seis milímetros a me atazanar com um movimento indefinido em voo rasante ameaçando pousar ou invadir meu nariz e ouvido. Não chegava a ser um enxame, mas o vexame é que eram apenas três e numa guerra desleal, as abelhas que surgiam em diferentes direções, importunavam e impediam o meu trabalho.  O problema agora tinha a importância solar. [De onde vem a dominação?]  Parece que não há uma lógica explícita, e nem sempre a tática de se encolher funciona. Então o que menos importava era saber quando ou quem havia inventado aquele artefato. [Sempre se inventará uma maneira de expressar os instintos e viver sem receios]. O instrumento com etiqueta chinesa era uma raquete com marca americana grafada em relevo. Uma arapuca com redes de aço e corrente elétrica e quando acionada fechava o circuito descarregando a tensão. Ah! Arapuá... Enquanto eu lia sobre a fúria e o limite do mundo, o minúsculo voador voltou a atacar. Um choque, e selva a dentro se vai a metáfora, o animal e o homem. Tende piedade de mim, senhor, porque pequei!

Mais um texto aqui

campo de origamis

Por Sueli Maia (Mai) em 10/19/2010
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E sobre a mesa dobrar o papel, e um sobre o outro dobrar, e simetricamente vincar com as unhas, vincar e deslizar na dobradura... E com a língua entre os dentes desdobrar. Seda é como pele sobre a mesa, e sobre ela a seda, e sobre ele os dedos que apertam até mais dobrar e redobrar... E sem qualquer pressa abrir [com mais um sorriso] os vincos do papel, e um sobre o outro ainda devagar, redobrar e outra vez e novamente, e só depois de por tantas vezes desdobrar, agitar as dobraduras ritmadas em cordéis, e por fim levitar, como levitam ao vento os cordéis, e como se ali houvessem agora mais que dois, ou mais que mil, ou fosse ali simplesmente, um vasto campo de origamis.
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O Portal cronópios - referência em literatura, editou dois textos de minha autoria, aqui neste link.

O poeta Assis Freitas dialogando com este poema, compôs, aqui , mais um campo de origamis.

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Meus agradecimentos a todos os amigos e leitores deste blog que visitaram, leram, enviaram emails, e deixaram comentários no café literário do Portal Cronópios. Obrigada!

subordinadas orações

Por Sueli Maia (Mai) em 10/13/2010
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Vista lá do alto a serra é como seios de mulher, o homem é imperceptível, e quase tudo se perde no colo da cidade. Úberes com várias bocas nas tetas... [A temperatura baixou em Friburgo]. Um vento frio batia seco no peito essa manhã, mas a cidade fervia espalhando gente de não ter mais lugar. De não ter, como prole de mãe parideira que de tanto ter até confunde o nome dos filhos. Naipe de metais no burburinho, são as gentes no comércio e os sons do consumo que espalha lixo em todo canto. Até bem pouco tempo os helicópteros não costumavam ser frequentes. E por aqui, também era rara a visão da carne crua e do aço exposto nos corpos de indigentes urbanos vestidos com cobertas e despidos de tudo. [A desigualdade é tão feia quanto a face da verdade. A ferrugem consome o ferro, a fome é laica, o crack é um lixo, e o desemprego é tão perverso quanto a dor sem destino que gasta a vida]. "Puta-que-pariu!" - Enquanto um menino fazia malabarismo e recolhia alguns tostões, eu o reconheci a correr da turba. "Corre! Pega!" A violência não é uma abstração ou uma obra surreal, e aquele era o George. O socorro era urgente, e a vida... ah! que vida era aquela? "Ah! Meu Deus! Deus do céu, alguém ajude!" - Mas quem é o responsável quando esse tipo de coisa acontece? E quem é capaz de deter a fúria? "Alguém chame a polícia pelo amor-de-deus" - O mal é permanecer de braços cruzados. Mas o sujeito com o Ipod falou: "prenderam o infeliz". - Certamente não há tecnologia que possa impedir tantas mutilações. A polícia não chegou a tempo de evitar o linchamento que amanhã estampará a página de um jornal qualquer.

"A violência não é uma abstração ou destino,
é um produto consequente. Um resto, um rastro.
É o resultado de contingências e descasos".

rotunda qualquer

Por Sueli Maia (Mai) em 10/06/2010
Há uma voz surgindo do escuro. Há um pano de fundo entre o palco e o camarim. Há uma rotunda qualquer entre o vulto e a meia luz iluminando devagar. Há uma cadeira entre o chão e o teto. Há uma linha entre o linho e o leito a cobrir. Há um texto a ser dito entre o teu nome e toda palavra inaudita. Há uma verdade entre os dentes e outra entre o silêncio e o grito. Há sempre o entre, entre as pernas, o ventre e a luz. Há um abismo entre o ser nada e o tudo que há. Há sempre um blues a cantar entre a bebida e a voz. E entre um texto qualquer repetido, eu ainda te vejo em tudo ao redor. E entre a chama e isto que chamo, hás. E no tanto do nada que é isto tudo que ora sinto, eu chamo o teu nome.
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Música: Oksana Grigorieva - Say my name
Imagem:Google

rascunho hiperbólico

Por Sueli Maia (Mai) em 10/04/2010

O inconformismo é aquele Homem que nunca consegue dormir. Agora não era mais o sonho e o tempo, a palavra e o silêncio, e também não era mais a loucura ou aquela pedra no caminho. Agora era um buraco do tamanho do mundo. O verdadeiro apocalipse bem no meio da avenida. Se o caminho de Santiago começa com o passo primeiro após a escolha da marcha em busca de si, ali estava eu diante de um se, e entre nós um buraco gigantesco. [Ah! se eu tivesse saído mais cedo de casa...] Aquela cratera terrestre era o fundo de um poço e o fim do meu caminho. Pelo retrovisor vi que meu rosto estampava um olhar de desespero e o ar do meu desgosto. - Porque será que nunca se consegue prever quantas horas serão perdidas no caos urbano? [Eu não irei falar de tempo, lugar, ou transporte alternativo]. Aquilo era quase uma hecatombe! O céu que se abriu no chão ou um meteoro que caiu arrombando tudo. Mas sem exagero, dali eu quase via o Japão! E frente ao inevitável restava-me vagar mentalmente, me rasgar inutilmente, ou simplesmente esperar. Aquele abismo era um fenômeno surreal. Aquilo era um céu invertido no chão, e a terra aberta com as vísceras à mostra agonizava. E frente à ela eu me desesperava. [coisa de louco! Eu não cria ser possível um buraco daquele tamanho]. Plantei meus pés no chão disposta a pular, mas entre Dante e o nada, melhor admitir o medo e corajosamente recuar e cochilar dentro do carro enquanto espero.
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Metade do meu dia já se ia e ali eu havia com um buraco na rua e no estômago. Nada de novo para quem pensa em pontes como forma de transpor abismos, [demasiado filosófico, muito dramático e pouco prático àquela altura] mas eu só queria passar e seguir. Ainda pensei em meditar, mas o buraco provocava irritação e minha fome aumentava. [O lado humano foi maior nessa história]. Quem tem trânsito mental cosmopolita com insights em profusão sabe bem como é que fica a cabeça nessas horas: o pensamento não pára à toa, há um caos mental intransponível, então é melhor ter papel e caneta por perto, e por isto eu tenho aos montes. Olhando aquele buraco lembrei muita coisa, tanta gente... [Será que foi mesmo num buraco como esse que ele sumiu? E eu sei lá!] Em todo humano pode haver o tal vazio, que pode ser preenchido com quase tudo e isto seria simples [ou simplesmente complexo]. Mas quase nada o preenche se não houver coragem para viver e existir buscando sentido p'ra vida.
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O buraco, o vazio, e o meu estômago eu já estava preenchendo com o rascunho e uma barra de cereais. Lá no fundo das verdades humanas estão guardadas todas as grandezas, mas também todas as vilanias e pendores. [como não sou nenhuma santa e já estava bem fula da vida, cheguei até a ouvir o estrondo do responsável por aquela cratera caindo ali...] Mas, o mais simples dos preenchimentos dos vazios humanos pode ser a escrita. Quisera uma poesia me chegasse nessa hora. Escrever é dar vazão a imaginação dando voz à personagens. É exorcizar vilanias, é reinventar vida e morte, e esvaziar-se da angústia ou violência - ah!, a violência...Entrincheirar-se na poesia pode abrandar o fel da vida, o mais que é humano ou até sua descrença. [eu tive medo de um assalto]. Mas tudo é mote e história, e pode vir a virar livro [mas o buraco me assombrando ainda estava ali]. Há crimes cometidos com revólver, há outros com palavras ou omissão. Há crimes por humilhação, e há os maus políticos. Tragédia mesmo é o descaso que faz desmoronar comunidades inteiras. Mas o abismo é ameaçador, e eu permanecia presa no carro diante da cratera. Mas eu escrevia sem parar. E se não me apercebi do tempo, percebi que a escrita é uma espécie de ponte sobre a qual transpomos abismos. Os homens da prefeitura chegaram com tábuas, improvisaram uma ponte e os carros começaram a passar. Quase chegando a minha vez, eu concluí este rascunho hiperbólico.
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Texto escrito em fevereiro/09

cênicos rubores

Por Sueli Maia (Mai) em 10/03/2010
A textura macia escondeu os sabores e uma língua restou quente e solta. Rubores na face, a saia era pele e o vermelho sanguíneo simulava círculos de fogo no ar. Tabasco entrando rua adentro e tudo ardendo mundo afora. O corpo estava numa espécie de transe e restava a girar, sem parar. [Bom era poder olhar e inventar sentidos]. Espectadores suspirando em seus lugares enquanto a sombra desenhava um novo contorno que o vento desfazia com frescor. Aroma no ar, almíscar a se derramar nos suores em bicas. Inadequado era palavra descabida porque ela queria e podia voar. Mas, talvez pelo ardor, as testemunhas se abanavam com chapéus e o embaraço. Em cena, rubores e inúmeras possibilidades.
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Imagem : Google
Música: Manassés - Santa morena

a invasão

Por Sueli Maia (Mai) em 10/01/2010
Foi Cristina quem me disse ao telefone: - Zumbis infestaram a casa! É uma invasão de esqueletos. Eles ficam pelos cantos, Caminham devagar e se esgueiram como cobras famintas prontas para dar o bote. Os olhos assustam, saltam como bocas arregaladas. É horrível!
- Eu quis ver de perto o fenômeno. Um deles parecia ser o Júlio. Vinte quilos mais magro e fraco vagava como um zumbi. Os frascos azuis espalhados sobre a pia, e um líquido branco já seco era uma pista que talvez explicasse o sobrenatural. Somente Clara escapou, porque adiou o ritual para depois do carnaval.
- Eles bebem todo esse líquido. Dali em diante todos se esvaem, evacuam, somem e depois reaparecem assim, esquálidos e sem noção. Há sete dias que isto acontece.
- Seis deles eu identifiquei. Manuela era a mais esquelética. Magérrima, não estava feia, mas as bolsas arroxeadas sob os olhos denunciavam uma espécie de privação. O olhar era fundo, desesperado. Pareciam famintos, prontos a invadir ou saquear. Alheia à minha tentativa de contato, Cristina retirou do forno um tabuleiro, e como num desses ataques de abelhas africanas, os esqueletos quase se desmontaram sobre a mesa.

hotel baviera

Por Sueli Maia (Mai) em 9/30/2010
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De lá até o monte onde ficava o hotel havia algumas quadras. Adormeci de cansaço após avistar o neon. Eu não ouvi qualquer barulho de trinco ou porta se abrindo. O meu espanto foi que eu estava em sono leve e sabia que no atrito do metal com a ranhura da madeira, o fecho produzia no portal um som alto e seco que, no silêncio, certamente teria me acordado. [Há coisas que não se explicam com a razão]. Tudo aconteceu no domingo após o jantar. Eu estava deitada quando, translúcida como uma lente de contato, ela me apareceu. No hotel Baviera era assim, o trânsito noturno não mais me assustava. Vultos circulando nos corredores, e os banais transeuntes querendo falar, se aglomeravam frente à porta. Com Iza não foi diferente:
- Não me sinto tão só e não sinto dores. Estive com Jorge, conversamos com Maximiliano e depois disso tudo, muita coisa foi esclarecida. Elizabeth precisa falar com o irmão, mas é ele quem precisa lembrar de ter cuidado com as águas dos rios, dos mares, lagoas.
[É inegável a precisão sísmica do coração.] - Sentei-me na cama e perguntei: "para quem eu entrego tal recado, afinal?" Já não ouvi qualquer resposta depois disto. Esfreguei os meus olhos (apurando a visão), e como quem vê um espectro, me vi imobilizada frente à desaparição. Totalmente desperta, constatei: nenhum corpo havia ali. Ainda pude ouvir um som alto e seco, e só depois percebi sobre a mesa, um bloco do Hotel Baviera. Lá estava escrito: "com amor, Iza Thereza".
"Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores,
levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles,
levantam-se os homens e suas esperanças..."
(José Saramago)
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Obrigada!
Em qualquer idioma, sempre uma bela palavra.
Agradeço aos amigos que me escreveram ao longo deste tempo.

plural de amarelo

Por Sueli Maia (Mai) em 9/29/2010

Talhado em metros de sol o vestido era um alvoroço. E lá ia ela com uma saia que aflorava calores de véspera. Gema, tequila, e quando se abaixava,  flores de ipê atapetavam o chão. Vez em quando daquele disfarce escapava faísca; é que arisca, a moça tinha um olhar de lançar chamas com iris de citrino que ardia até dourar. Calor na hora certa prá frio fora de hora, e na medida, o vestido com babados de calêndula aquecia as mãos da bailarina. E quando seus braços se abriam em chamas, o que queimava era um par de pernas que se retorcia em nós. Sempre-viva soltando escamas aos pouquinhos e rodopiando em agito, a mulher atirava os panos do vestido como pétalas que caídas do céu se erguiam do chão por moinhos de vento. [Há uma face do fogo que enfeitiça ou que atiça com seu lume serpentino. Esse brilho só arde, não mata, porque é chama ligeira e talvez o que queime seja o tempo de exposição prolongada e não o calor por dentro e por fora]. Um olhar a encarou e um sorriso abriu-lhe o vestido. Mas foi assim que ela o deixou ali, dentro daquele fogo.
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Imagem: Google

medidas, figuras e órbitas

Por Sueli Maia (Mai) em 9/28/2010
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O corredor era um gargalo que após sete metros se abria em curvas e à direita ou esquerda, havia salas contíguas com bancos à porta. São 11:30 no relógio do 25º DP, me restava esperar e registrar a ocorrência. As cenas vinham e se desfaziam enquanto eu me acalmava. No pátio, oito ou nove metros era a altura do muro. Numa das laterais da carceragem, um pastor alemão no canil. Do outro lado, mãos fora das grades. Durante algum tempo o dia 7 de fevereiro foi uma cicatriz em meu pulso direito. Nos engarrafamentos e pelo repouso das mãos no volante, eu a toco. Aquela era a segunda vez que eu e o Lúcio nos víamos em uma delegacia. Quando menino ele era ágil e hábil com as mãos. - Este aqui não é órfão. - Me disseram. - Quase não fala. É comum ficar pálido e desmaiar. - Viera da fazenda dos Mattos. Há seis anos e já formado, me disse que finalmente chamava-se Lúcio de Mattos. O nome do pai - após o processo - constava agora em sua certidão. Visitas começaram a chegar e outros braços se juntaram em acenos nas grades. Percebo um inseto, o bote de uma lagartixa e uma fila de formigas no muro. No jornal - manchetes de mais um crime, estragos das chuvas, campeonatos, fraudes e a economia. Olho meu braço. Eu já havia me cortado em um gargalo. São 13 h e chega a minha vez. Lúcio é o escrivão e digo a ele: naquelas órbitas eu pressentí mais que uma mera cicatriz. Entreguei minha bolsa e ele correu.
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horizontais - diário das ruas

Por Sueli Maia (Mai) em 9/22/2010
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Roncou a motocicleta - são 5:30 - com a entrega dos jornais. E não pelo tráfego, mas pela intensidade, há ruidos peculiares à rua Dr. Joaquim Benevides. Por detrás das persianas e cortinas, mãos, olhos e pontas de cabelos denunciam a astúcia costumeira. - Caiu! - Gritou um. E de seguida, aplausos e assobios foram replicados com uma risada. E noutro grito: - Deitou! -Josete é conhecida por sua fartura. Capa de revista nos anos 90 transita às claras com seus namorados. Um tipo inevitável de mulher, não se importa com o noticiário. No correio da vizinhança, ela e seu Jamil figuram em primeira página. Viúvo há quase dois anos, o vermelhão dono da padaria é farto nas formas e na risada. Do terreno baldio à frente, mais dois arranha céus surgirão. No verão, as folhas da paineira atapetam as varandas, redobra o trabalho e aumenta a campanha do contra. Sobre o seco das folhas, a simples queda de um objeto desperta os plantonistas da Joaquim Benevides. Como o estouro de um transformador após um trovão, o tombo pareceu-me pesado. A risada era conhecida. Horizontais, pensei. Algo caiu e não sei bem por que, mas pensei na Josete, no Jamil e na velha paineira.


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Música - Gustavo Dudamel e Orquestra Simon Bolívar - (Mambo) - Bernstein

oásis...

Por Sueli Maia (Mai) em 9/21/2010
Areal de beduínos, lençóis, e a lenta miragem ondulando em sol posto, era um oásis e tudo aquilo era ele, era eu e era nada que ao mirar, a minha boca umedecia e dos meus olhos choviam brilhantes. Olhos d'água e eu bebia com o olhar as tuas águas e pedia sem falar, vem, mas vem de mansinho, tenho sede. Eu também sou água e sei, matarei tua sede na minha sede até que os corpos cansados tenham força prá seguir. Vês? É um oásis e a certeza de encontrar, beber, fartar e por fim, umedecer uma boca noutra boca ressequida nesse inóspido deserto que por certo, será fértil por nós dois. Marcas, passadas e as pistas deixadas nas dunas eram corpos ondulando um no outro sob o céu que espargia seu lume. Sonho, oásis, miragem e tudo era pouco e bastante prá nós dois. Céu protegendo, és fonte e eu sou água sob o céu de um sol posto. Bebe-me inteira, bebamo-nus e dá-me o remanso, aos goles. E quando as primeiras estrelas cairem no céu dos meus olhos, eu quero teu riso no meu. Vem! Dar-te-ei minhas águas. Então rega essa minha estiagem que é noite. E essa noite é tarde e estou rouca de gritar prá dentro, estou louca por dentro, ardendo também e quero cair em teus braços. Deixa-me morrer, só esta noite, tu és meu oásis e os teus braços me abraçam e me deito nesta cama que é , um areal de beduínos.
Imagem: Google
Música: Ryuichi Sakamoto e Richard Horowitz
Trilha de "O céu que nos protege"

lugar comum

Por Sueli Maia (Mai) em 9/18/2010



A costura sempre fica entre o alinhavo e o arremate,
mas para escolher melhor é preciso estar atenta aos detalhes no avesso do tecido.




Meu voto sou eu que escolho, por isto voto em MARINA SILVA
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"Nada mudará na sociedade se os mecanismos de Poder
que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado
a um nível muito mais elementar quotidiano, não forem modificados"
(Michel Foucault)
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sempre mar

Por Sueli Maia (Mai) em 8/20/2010
Premências de amar em mar, um amor. Do que me falta, pondero a falta. E se me basto por me amar, eu faço o pacto de te amar em tua falta. Perenidades de um vazio em nossas fomes, nossos quereres, esses são tudo, esses transbordam. Assim, amar-te em mar de amor é tudo e nada. Minha desordem é que te amar, prá mim é sempre, sempre te amar. E o sempre é tudo e sempre, é nada!
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Fotografia: SMaia

biografia de tantos nadas

Por Sueli Maia (Mai) em 8/19/2010
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Nem sempre nos damos conta, mas nem tudo nesse mundo é o que aparenta ser, nem tudo é o que se quer. Assim é que o rochedo maciço lá do alto, se transforma simplesmente em uma imagem, e na água escura do lago, ele pode ser tocado, sentido e no toque das mãos recolhido, para depois escorrer pelos dedos, gotejar no chão e sumir na terra. A gente perde muitas coisas vida afora, é fato, mas ganhamos outras tantas ao longo do viver. Pequenas coisas, assim como gestos singulares, podem colorir a mesmice cotidiana. Na solidão plural, os dias se fazem diferentes com um simples bom dia, um abraço, um sorriso ou um e-mail singelo. Pequenos nadas que podem ser o bastante para fazer um dia ser diferente. Ontem foi uma noite muito fria, a noite mais fria de toda a minha vida e eu tenho 52 anos. Por instantes eu pensei que não conseguiria me controlar, me aquecer... E lembrei dos tantos que estão sem abrigo e por fim, me encolhi, tremi calada até dormir. Hoje o meu coração se aqueceu com um desses gestos. O poema "Balada de tantos nadas incontidos", escrito pelo poeta José de Assis Freitas, um tudo que pode ser lido em:ww.mileumpoemas.blogspot.com/2010/08/311-balada-de-tantos-nadas-incontidos.html.

Obrigada, Assis, guardarei para sempre


Fotografia: SMaia
1 Lago Nova Friburgo Country Clube
2 Leito do rio Lumiar
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incontido

Por Sueli Maia (Mai) em 8/17/2010
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O mar da minha terra é como eu. Primeiro se arrebenta nos corais e arrecifes, e espraiando no alto se espalha e expande, marcando lugar. E domado ele rola miúdo e mansinho, na beira, na areia, olhando pro sol. O ar da minha terra está em mim. Porque ele inspira, insípido, invisível, as mais fortes paixões. Depois ele exala o tempero e cheiro das índias e suas especiarias. Os rios da minha terra correm em minhas veias, e lembram Veneza que deita seus veios, sem rumo e sem foz. O chão da minha terra é meu plexo, meu nexo, oriente e nordeste, porque é nele que nascem mangabas, goiabas, sapotis e cajás, que no pé, eu trepo faminta e no alto eu pego, o fruto maduro que eu quiser chupar. O mar da minha terra é como eu, nada contém.
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Escrita em 16/12/2008

o ponto e a linha circular

Por Sueli Maia (Mai) em 6/24/2010

A linha, o ponto e o lugar do encontro. Amigos no ponto de encontro e sem espera a condução das 6:15 logo sai. Mas tudo ao redor cheira a restos: - amônia com bebida entre as pernas e o cigarro que exala dos poros é náusea. Mas é um corpo que transborda do trago e tombado se enrosca nos trapos e tenta viver, se aquecer. Aos tombos chacoalham os corpos de pé nesse ônibus. 6:20 - trânsito, e tudo hiberna na preguiça das manhãs. Droga fumaçando nas cabeças. Paciência! É mais um sopapo e espio lá fora o que sobra do calor das fogueiras quase mortas, e há tantos quase mortos lá fora e aqui dentro à margem de tudo. Quase morte é a mistura dos odores dos corpos acebolados que roçam em quase silêncio de um sono a teimar. Paciência com os buracos das ruas e os zumbis transitando, roçando, pulando, acordando, se olhando e voltando a dormir, a roncar, a babar. Paciência! Há corpos chacoalhando aos solavancos dos buracos que são tantos e tantos também são os solavancos dessa vida, que as mãos quase não dão conta de segurar com paciência. Na volta há diálogos inaudíveis e dá vontade de cantar e espantar antes que em outro solavanco eu morda outra vez minha língua e outra vez, eu suspiro! Cruzo pernas com olhares e olhares com sorrisos. Frente à casas fechadas vassouras a varrer calçadas e as fachadas dos empórios vazios são bares com copos vazios caídos sobre as mesas. De pé equilibrio de cansaço com a ressaca das garrafas alegres que ontem dançavam. Final de um dia e um sol deixa em cores um laranja e o amargo das laranjas nas línguas e no céu dessas bocas há olhos de outra noite em que escrevo sem pressa, o impaciente tempo dos homens. 6:15 é a chegada dessa linha circular.
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Texto reeditado
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arquitetura e espaços

Por Sueli Maia (Mai) em 5/13/2010
Plácida e salina, migrando com água à superfície. Fendas nas camadas degradadas, abriram espaços entre as vigas e os vãos. Por trás das fachadas, rebocos das húmidas e vazias manhãs. Por dentro: sulfatos, nitratos e cloretos garantem - permeáveis - as paredes calorosas sem fissuras nos betões. Guardo-me intacta. E há recintos com minúcias ocultas e claros espaços nas salas e quartos de nós. Abre as portas, entra, cava-me. Há estâncias minerais daquilo que te é potável. Reboca-me e à reboque a tua e a minha liberdade e direção.
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Texto reeditado
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Arte: Tarsíla do Amaral
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o voo

Por Sueli Maia (Mai) em 5/06/2010
Deixe-me dizer sobre as palavras que me chegavam ligeiras, em bandos. Essas meninas esquivas estão em suspenso, como poeira cintilando num raio de luz que a mão quer reter, mas não consegue. Já rolei com palavras em sonhos, dancei, dissolvi-as na língua e com pimenta até saboreei demorado. Este é um voo de palavras e houve momentos em que as senti se aproximar e ensaiei escrever. Mas as palavras arremeteram a aterrissagem e arredias voaram novamente. É, estou sem palavras e não sei por quanto tempo elas ainda se aterão a esse capricho de, por pirraça, me fazer esperar. Talvez elas saibam que só em silêncio se consegue sentir e consolar tristezas. Enquanto elas voam eu deixo aqui o frescor de palavras meninas a soprar uma brisa de beira de rio, plantando desejos.

Música: Jacques Morelembaum

ponto cego

Por Sueli Maia (Mai) em 4/08/2010
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Há um lixo que em todos os sentidos, subjaz nas grandes tragédias.
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cerquilhas e sustenidos

Por Sueli Maia (Mai) em 3/24/2010
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No cartaz em cores, três fotografias detalhavam o instrumento. A madeira era imbuia em alto brilho e o móvel parecia em bom estado. Olhando friamente pensei: - um piano não é mais que isto, é apenas um instrumento a serviço da música. A tomar pelo modo como a vi tocá-lo foi possível supor que eu poderia estar enganada. Mais que um piano a negociar, aquele móvel parecia ser um ente. Como se os dedos fossem olhos a mirar um corpo com desvelo, seu toque deslizante trazia bem perto uma garganta ou uma voz. Algo mais sutil que a melodia soou numa linguagem corporal silenciosa. Sem pressa pôs-se de pé frente à banqueta, estendeu o feltro e após mais um afago ao teclado, fechou o instrumento. Assim restou e após um suspiro debruçou sobre o piano, numa espécie de abraço que não abarca, todavia. Mas algo foi contido enquanto um casal examinava com minúcias o instrumento. E entre bemóis e sustenidos os potenciais compradores apreciavam a melodia, segurando uma cópia do anúncio: - vendo piano Fritz Dobbert.



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agrícolas

Por Sueli Maia (Mai) em 3/17/2010

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Em sulcos, a terra se entregou ao lavrador. Como um deus a semear canteiros, o jardineiro soprou esporos, deitou sementes e cruzou espécies em variados tons de lilás. A vida se engendra e fervilha em meio ao humus.
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plurais univitelinos

Por Sueli Maia (Mai) em 3/11/2010
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A alma da noite tem cheiros, sabores e surpresas. E a madrugada é longa ou curta, alegre ou triste como tudo, mas quando o ofício é cantar há na noite o calor de um sol. Eu já havia decidido parar quando Dirceu chegou. Uns poucos casais ainda estavam no bar, me animei e recomeçamos. Parceiro há muito, Dirceu sabe o meu tom em cada melodia e pelo entrosamento, a divisão é uma delícia e invertemos o ritmo em algumas músicas. A comunicação flui entre olhares, sombrancelhas e acenos e se traduz em um repertório que se espalha noite adentro. A música chama memórias, acende os humores, as histórias e os amores. Dirceu sabe a hora de tocar bossa nova e sabe quando é preciso um blues. No escuro do bar se percebe a madrugada pelas mesas vazias como a rua, o que ajuda na acústica. Para minha surpresa chegaram já tarde - Luíza e Lizandra. Muito de mim acompanhou o crescimento dessas duas. Eu sempre soube que Luíza não gostava da noite. Idênticas no rosto, no corpo e na voz, por um ângulo misterioso se consegue diferenciar uma da outra. Mas, enquanto Luíza tem a disciplina dos trens, Lizandra é a mais pura liberdade. Vogais e consoantes, uma flui e a outra contrai. Luíza esteve noiva por anos e Lizandra voltou da Europa esses dias. O garçom serve um vinho e um malte. Luíza acena para mim e o garçom vem vindo com pedidos das duas em dois guardanapos.

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Imagem: Jana Magalhães

também sei falar de amor

Por Sueli Maia (Mai) em 3/10/2010
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Dura mais que um instante o prazer que pra sempre guardarei em mim. A beleza do teu corpo quente, teu cheiro, tua pele de cravo e canela da China, da Índia, do mundo de mim. Dura mais que um instante, toda essa alegria de estar em teus braços e ficar em ti. Dura mais que um instante o interminável momento em que a luz miúda dos meus olhos revela teu riso de gozo que - pluma, deixaste meu corpo e minh'alma. Daí falo baixinho, me escuta, acredita, sou louca por ti. Eu te amo!
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texto reeditado
escrito em dezembro de 2008

a relatividade do lounge

Por Sueli Maia (Mai) em 3/10/2010
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Existe um lugar onde as coisas se assentam sem pressa de ir. Nada a dizer senão ouvir e calar. Vinho, vulgos vultos, vozes. Música ao longe e lounge é um desses lugares em que a pensar ela se demora. Nada a fazer senão esperar ou sumir. Longe não tarda a chegar e ela já está bem perto.
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tímido

Por Sueli Maia (Mai) em 3/10/2010
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Sentado e centrado no centro da sala de um mundo abstrato e real, ele era um mundo de perguntas por fazer. Os blocos eram lógicos, em verde, vermelho e amarelo. Seus olhos azuis eram mares onde barcos navegavam em ares sonhadores de menino. Ele era lento, calado, secreto. Ele era lindo, como o cristal que olhava, tentando decifrar o mundo de cores em tanto pensar. Ele era quieto, mínimo, afásico, em medo e vergonha de se flagrar um menino feliz. Mas era grande em avidez. Seus dedos não paravam de explorar, tocar, pedir. Sua risada era séria, plácida, distante, porque só ele sabia que não podia sorrir. Sua acuidade era extensa, imensa, telescópica, porque só ele entendia, o quanto queria compreender. Ele estava sentado e centrado a brincar. Ele falava p'ra dentro, numa ilha para além do oceano de plutão. Mas os blocos eram lógicos e os seus olhos, azuis. Ele era só um menino e era tímido.
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Imagem Google
texto reeditado

um nome de mulher

Por Sueli Maia (Mai) em 3/08/2010
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Esta palavra tem garganta e voz. Levanta cedo, estica a folha, prende os cabelos, vai. Faz o café, resolve o almoço e sai. Tem coração e é um PC com um HD de um terabite. Um pão com beijo e histórias bem vividas, são quatro Gigas, arquivo bom. São livros velhos. Tem Kerouac, Beatles, montanha russa... Agora corre. O trânsito é lento. Olha o relógio e lembra galos nos quintais de seus avós. Lá vem o tráfego. E tudo passa na cabeça, ela acelera e grita: OLHA O CICLISTA! No som do carro, a voz é bela. Repete a música, desacelera e pára. É o sinal. Agora o cérebro está um caos. Há tanta coisa...é muita coisa! Ela é um dínamo. Um quase velox. Vestindo aço e pedra, o átrio chora e ela sorri, engole o choro e escuta. Fala prá dentro e prende o grito. Sai novamente, e haja pedra e vida. Vai ao cinema, escolhe um filme e chora o dia em uma cena. Mas, chega à tarde, ela é mulher e sangra. Sangra suas guerras quando se cala. Mas tudo sara e beija o homem. Disfarça o dia, relaxa o corpo e limpa a pele em banho e espuma. Agora desce, esquenta a janta e ouve a outra voz. Lembram dos filhos e da família. Agora lava com detergente biodegradável, e seca a louça, as mãos e o dia. Agora o grito. E em silêncio essa garganta escreve e elabora a sanidade da loucura. Arquiva tudo e limpa as teias. Agora o espelho, um hidratante, ela respira, solta os cabelos, ama. Esta palavra tem um nome e vive. Eu minto! Minha garganta, não. Hoje é domingo.
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texto reeditado

átonas

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
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Mais um dia se foi e a palavra não veio. Fora do eixo, não era apenas a terra que tremia.
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o milagre

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
O fogo crispava na fogueira que aquecia o inverno. E entre o vapor e a chama, um halo pairava no céu e dava à noite, a mística de uma anunciação. E lá vinha ela coroando em seu nascer. E quando nasceu não chorou. Rompeu o escuro com a luz e rasgou o silêncio, com a risada mais gostosa desse mundo. A parteira se espantou com a desordem e em arrepios, caiu com a menina nas mãos. O espanto na face, ninguém respirava, mas a menina, continuava rindo. Essa foi a primeira noite em que ela escapou de morrer. E via coisa, ouvia vozes e falava com gente do outro mundo. E não morreu por descuido, na noite que tropicou na beira da fogueira. Era fraquinha, coitadinha e era branquela. – Se alimenta de vento essa menina. - dizia dona Áurea, a beata da igreja. Ela espalhava que Clarice era Santa e se benzia quando via a menina. Seu Alfredo, o barbeiro fofoqueiro, era outro que dizia que Clarice não vingava, porque ela via alma penada. E teve o dia que ela caiu, dura e tesa, ao chão. E gritaram: - corre minha gente, acode meu povo, a santinha morreu! Flores enfeitando, velas acesas e a menina, um anjinho, tão lindinha, com os olhinhos abertos. De repente, prá espanto do povo, Clarice se sentou e caiu na gargalhada. Um estatelou-se ao chão. Outro ficou duro. E todo resto do povo do velório, correu. E nem se sabe quanto tempo, durou aquela morte. Só se sabe que esse foi o último dia em que Clarice escapou de morrer. Nesse dia, a menina da risada engraçada, ficou conhecida como – o Milagre.
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Arte: Tarsíla do Amaral

Ícaro implume...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
Ele era um homem sem maldade ou expressão. Ele era ingênuo. Uma criança velha, carente de gente pela vida afora, sem pressa de crescer. Um sexagenário sorridente que não sabia mentir, mas tinha vergonha de tudo. Desprovido de beleza, padecia o escárnio dos homens bonitos e viris. Entre velhos viveu uma infância muda e distante de afeto. Cresceu solitário como uma ilha perdida num imenso oceano. Os sulcos em sua pele revelavam os anos idos e mal vividos. Seus cabelos pareciam a crina de um corcel e sua face avermerlhada compunha a estranha feição que o destacava por onde passava. Jair chamava a atenção porque para além, vestia-se como se todo dia fosse carnaval. Sorriso largo e nu mostrava a face ingênua de uma criança. Alheio à tudo, não destinguia calor ou frio em cada estação. Adoecido Jair relatara suas memórias. Disse que houve um tempo em que pensava ser um animal. E após um dia inteiro pensando e olhando os bichos, sentiu a estranha vontade de morder troncos em um bananal. Como se fora um cão, tão logo o dia e a criação deitaram-se com a noite, soltou seu instinto animal e raivoso, mordeu todos os caules ao redor. Sua boca ardia e doía mas a fúria incontida, libertara de Jair, o cão. Depois quis ser pássaro bater asas e voar. Subiu a colina rente à cerca de cipreste e margeando a divisa,subiu até o topo. Bem lá do alto onde avistava miúda, a casa de taipa, mirou o pouso, bateu os braços como asas e trissando qual pássaro, decolou. Quedo, em instantes colidiu ao chão. Com a pele rasgada e as asas quebradas, Jair não foi cão ou pássaro. Jair não foi homem pois não conheceu mulher. Jair era ingênuo. Um Ícaro implume. Jair era humano e sorria, sempre.
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Imagem Google

lembranças de domingos - a cadeira...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010

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Encaixotava e enlaçava seus abismos e lá ia de presente para o mundo aquela bomba, pronta para explodir. A água que se bebe é sempre a mesma e a ingenuidade é uma criança privada de gente por toda vida. Quando era menina eu cria que o mundo era um lugar bem longe de mim ai criei o gato de botas e um País de maravilhas. Alice foi morar no mundo e eu fui prá São Paulo, ingênua e desacostumada de saudade. Mas se eu não for quem sou, quem é que é? Quem me será que sou? Eu resolvi fazer faxina e achei a caixa de ‘retratos’ em branco e preto. À rua consertar sapatos saímos eu a bomba e sua angústia regressiva de saudade. Achar sapateiros em São Paulo carece sorte, muita agulha e um palheiro... Em Santo Amaro encontrei um com máquina, banco e um periquito a sujar tudo e me pediu para esperar. A sinfonia do lugar lembrou meu vilarejo e assim peguei o amarrado de ‘retratos’ e vi o filme do Tornatore, outra vez. Cada amigo de infância era um sorriso e a risada escangalhada era a lembrança de alguns tombos.
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Ai achei meu Vô na cadeira de balanço. Hoje eu penso que amar faz bem porque faz desejar compreender o outro, ser tolerante e ter vontade de ser e de fazer feliz sentar junto e conversar. Cuidar do outro é tudo que se quer e eu amava aquele meu Vô lindo com o cabelo bem branquinho... Mas não deve ser coisa de Deus ou dos deuses esse negócio de desprezo e menosprezo... É coisa de gente, mesmo. É coisa do humano desprovido de humanidade mesmo. Ai botar na conta de deus a crueldade que se faz, é sacanagem e aquela foto me lembrou o que faziam com meu Vô naqueles dias...Nem sei por que lembrei tão claramente o que passou naqueles domingos que de engraçados éramos só eu e o meu Vô (porque o resto era um inferno). Pensando bem foi meu nariz que acendeu minha memória. O cheiro daquele lugar levou o tempo narina adentro e prá bem longe lá bem dentro de um tempo e aquele tempo voltou de uma só vez... Era tanta náusea que eu sentia com o cheiro enjoativo do talco e do leite de rosas, naftalina e brilhantina ‘Glostora’ nos cabelos com ‘marrafas’ segurando rococós e a pomada ‘Minancora’ cobrindo a espinha do nariz... A Cadeira de vovô era cativa e balançava sem parar. O exército invadia meus domingos e o horror tomava conta do sítio com primos, tias, periquitos, papagaios, cachorros, (os cavalos eram eles à mesa) e toda bagunça do mundo se fazia em um só dia. Muita comida, bebida, copo que caia, criança que chorava e comadre que gritava e haja requinte. Alfredo disputava os ossos com os cachorros que rosnavam e ele a infernizar o bob aos pontapés mostrando o osso pro pobre do cachorro babar até morrer...
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Loucura mesmo era a lascívia dos gatos que roçavam as pernas roliças de tia Cândida e Alaíde solteironas beatas-vitalinas, cheias de pudor e falsidade que diziam jamais se casariam pois nem queriam e homem algum as merecia ou seu amor. Finas e requintadas, jamais, lavariam cuecas (e nem seriam roçadas às pernas a não ser pelos gatos tarados de madrinha). Mas falavam mal de toda cidade com olhos e bocas que torciam à direita volvendo à esquerda a condenar aquilo tudo que não lhes fora possível fazer com os homens (mas que dava prá ver, que bem queriam, pelo frenesi com que tremiam em ais e uis pedindo ao tio mais linguiça...) Eram as tias mais donzelas e pudicas de araque, sedentas e safadas que só vendo. Via-se no frêmito do tronco e sob as saias se calculava que a lascívia e o fogo às levaria direto ao confessionário (ou ao inferno) na próxima missa, e haja penitência... Rezavam terços usavam véus e, castas, qual ‘Geny e o Zepellin’, usavam calçolas (super sexy) feitas em puro algodão dos sacos de açúcar aproveitados e reforçados em costura dupla e de tão grande seus traseiros, boatavam os fofoqueiros vingativos que, de costas, em suas nádegas todos liam o rótulo: [IRMÃOS PRIMO S.A. - AÇUCAR UNIÃO] (não sei por que tanto zelo, mistério e apego àquela altura da vida). Aos domingos sempre a mesma algazarra com bocas se entupindo de frango, macarrão e farofa que se espalhava pelo ar no descuido ou descontrole da risada (um teatro do absurdo).
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Menina e muito quieta eu nem me incomodava, como hoje, com toda aquela finesse e discrição coletiva. Aquilo tudo era patético que só vendo. Meus ouvidos reclamavam e eu me escondia pelo mato no quintal tentando encontrar sacis, príncipes e feijões encantados como os do João. Não temia o lobo mau e sonhava em conhecer branca de neve para avisar sobre a maçã estragada e o veneno. Frutas no quintal, brincar com lama mais tarde meu primeiro beijo numa daquelas manhãs de domingo acanhado. Ah! Naquele tempo nada era tão grave e erotizado como hoje e maus modos, mesmo, era ficar na sala enquanto adultos conversavam coisas de adultos e criança não podia ouvir (até parece...). O que ficou de mais marcante desse tempo a minha memória eternizou. Foi o terno olhar do velho-Vô. Vovô viveu ternura pequenina e ele mesmo era lindinho feito um brinquedo bom com olhos que viam tudo e ao seu redor, olhava em tudo. Ninguém o via ou ouvia. Ele era o Rei no meu mundo encantado e ele sabia do reinado então me olhava em seu sorriso nu. Percebi a despedida silenciosa do meu Rei. Vovô morreu de saudades da vovó e da lembrança de uma vida de ternura em par. Com a morte do meu vô morreram os almoços e os domingos. Mas a vidinha besta e enjambrada em maus modos continuou viva e patética por muito tempo ainda. Nem disfarçaram a indiferença da ausência do meu Vô e até quiseram ver com pressa seu partir. Fecharam tudo com cimento e lá ficou meu Vô lá dentro. Sem ele também fiz silêncio por um tempo mas nunca esqueci seus olhos que falavam só prá mim. Uma cadeira de balanço me acordou guardei os retratos peguei meus sapatos e sai devagar...
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Imagem Google
Texto reeditado
Música: Bolero de Ravel - Pink Martini

capita, verba, vinum...

Por Sueli Maia (Mai) em 3/04/2010
Sinais de perigo em fobia visceral. Estímulos aversivos e as mãos frias e suadas despem as sísmicas urgências em um líquido corpo nu. Músculos afrouxam descongelando a luta contra a esfinge. Olhos de espanto e na penumbra, uma palida face em fuga. Incólume a bailarina anuncia o espetáculo. E um corpo cataléptico sem esfincter ocupa-se em morrer frente à TV. Eis a - Panis et circenses...
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Imagem Google
Música - Marisa Monte - Panis et circenses
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plácidos pronomes

Por Sueli Maia (Mai) em 2/25/2010
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Acordou com o barulho. Quis caminhar sob a chuva que deitava com o vento e adentrava a soleira. Lembrou que pela manhã voltaria à margem do rio e molharia os pés e o vestido em busca de frescor. E sobre a relva miraria o curso das águas e mais uma vez perceberia que o tempo, como o fluir, não se permite medir. E sob a ponte veria as árvores que as mãos tatearam diariamente, mas que - juntos - só tocariam no instante de uma nova travessia. E lembraria que no reflexo do olhar, a placidez de um branco faz-se azul. E sorriria ouvindo em outro ritmo a melodia, e cantaria em reencontro outra canção. E dançaria sem falar em desencontros e diria que as águas passam depressa sob a ponte e sua força leva tantas coisas. Mesmo assim e por mais forte que seja, a chuva obedece ao vento e ele muda de repente a direção. Mas, mesmo sabendo que contrário a tudo, a dor é igual e se demora, falaria de amor novamente. E portanto e por saber o quanto, com plácidos pronomes diria: - amo. E conjugaria este verbo, em todos os tempos.
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Imagem Google

réplicas

Por Sueli Maia (Mai) em 2/04/2010
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Algo animava aqueles bonecos. - É a última fábrica na zona industrial. Juntos, tantos dias sem notícias, não é comum. Tudo planejado, na próxima semana ocorrerá o lançamento dos novos modelos. - Arthur supervisionava a produção e pediu minha ajuda. À entrada, alamedas de eucaliptos e distante do estacionamento, o edifício moderno tinha portas que abriam e fechavam automaticamente. Ao fundo, como guindastes movendo miniaturas, robôs com braços articulados e sobrepostos, erguiam as peças. Nos corredores, réplicas deslizavam sobre esteiras. Na pós produção, numa espécie de sala de horror - em série - os corpos de Ana e Davi. Uma descarga gelada escorreu-me à espinha e o estômago de uma só vez. Atuando em ficção, foi como me senti. E sem saber por onde começar, parei. Havia nos dois o desespero e a urgência dos amantes. Quis caminhar entre os modelos e com as cenas de um filme correndo em paralelo, me obrigava a pausar diante das cópias de um e outro. Era algo automático e na réplica de Ana: "Negócios não atrapalham, tudo é risco! Ele é passional". - Passos adiante e uma frase recorrente: "Ela me desafia e excede ao se exibir publicamente". - Davi falava pouco, mas, em uma das brigas mais violentas, foi assim que ele se justificou: "Isso parece uma guerra, numa hora dessas, alguém se destrói". A mão de Arthur no meu ombro e um súbito suspiro, trouxeram-me de volta, mas ali, alguma coisa não me pareceu original.
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Música: Danzón nº2 - Regência - Dudamel

as imagens

Por Sueli Maia (Mai) em 1/30/2010
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Ali o trabalho era minucioso. Com a porta principal ainda fechada, os sons se amplificavam. Passadas e pancadas ecoavam causando incômodo. Por onde entrava, o vento juntava sobre o gesso, o pó e o sombrio. A limpeza das peças sobre o mármore parecia mecânica. Seguras às mãos, estávamos distantes daquele pensamento. Mistérios instigam e desafiam os limites humanos e quanto mais denegada, mais a fé se reafirma no inexplicável de pequeninas coisas. Sobre os meus olhos os afrescos e os vitrais que a clarabóia iluminava. Sob eles, os bancos e outras imagens que se perdiam no silêncio e na contemplação das horas. Ela chegou logo cedo e como sempre flexionou os joelhos e ao passar entre as fileiras, ergueu o olhar, com a mão direita gesticulou um sinal e sentou. - Me ajuda! - Foi o que sussurrou ao olhar-me no alto. Daqui eu ouvi, mas também pude ver que ele - pela porta lateral - entrara, imperceptível às demais. Há instâncias que entre o instante e a eternidade perscrutam, invisíveis. Tomou-lhe pelas costas e disse baixinho: - vem cá, aqui atrás é bem melhor... - Por trás da coluna o que vi foram mãos às coxas, assim que ele levantou-lhe o vestido. Antes que o sino tocasse, ainda ouvi-lhes a respiração e entrecortados, os gemidos e as juras de amor. Aberta a porta ela se recompôs alinhando o vestido. Ajoelhou-se, cobriu-se com o véu e novamente se benzeu. Soprei-lhe no ouvido. Fitou-me e entre dentes disse: – estátuas não falam! Mas caminhei junto a ela até o confessionário.

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música: Mozart
imagem: Google

indeléveis

Por Sueli Maia (Mai) em 1/28/2010
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Ali entre a pele e a folha, em meio ao sopro e a queda, entre o que está e o que se move, ficamos, estamos, seremos.

hibridos dictos

Por Sueli Maia (Mai) em 1/28/2010
Eleodora alternava seus gestos e humor. Entre o selvagem e o suave, ela era híbrida na mescla das raças que deixaram-lhe herança nos olhos e o indefinido da cor. E mesmo farta das mordidas a doer-lhe às coxas, permanecia vivendo entre os bichos. Na cadeira a balançar ouvia Bach. Quieta, olhava estrelas e enquanto chorava, bebia. Mas se os seus olhos miravam o nada, uma volição quase explícita movia-lhe as mãos ao afagar os pelos do gato em seu colo. Os pés a roçar, acalmavam o cachorro que parecendo excitado se erguia. Esse pequeno espetáculo era encenado todas as tardes e talvez fosse um engodo provocativo aos homens que trabalhavam na construção à frente. Mas poderia ser um delírio o que era comum aos amantes etílicos. Eleodora bebia e delirava e seus olhos transgênicos prenunciavam um cio e com códigos híbridos ela deixava escapar seus devaneios. - Quem sou, que língua eu falo e a que reino pertenço? Gosto de falar sozinha e com as outras e não para me vingar mas para selar o misterio é que eu falo, também, com os bichos e por vezes me entrego aos instintos. Inquietas em mim, a santa e a gata que roça e ronroneia pedindo o que quer. Alimento-me com leite, é doce. – Ela continuava hipnótica com as mãos sobre o gato. E num repente o gato escorregou por entre as pernas e ela despertou e percebeu o seu vestido sem botões até a altura das coxas. Ao seu redor dormiam um homem e os outros bichos. Olhou-me e disse: – Sou híbrida e selvagem. Fitei-lhe os olhos que mudavam numa cor diferente.

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Arte : Mason




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eufêmicos

Por Sueli Maia (Mai) em 1/26/2010
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Como velhos parceiros nos reconhecemos e nos comunicávamos pelo olhar. Márcio era impulsivo e no fazer das horas era um general de feitio cuja única disciplina era o trabalho que era elo, mundo e sina. Um anarquista com vícios que não combinavam com a persona sisuda que interpretava gestualmente. Gago e talvez por vergonha era econômico ao falar. No ir e vir dos dias disfarçava bem os seus desvarios. E ainda era maniento e obcecado por ser autoridade. Quando o vi pela primeira vez ele estava em apuros e desde então seguimos juntos com pouca fala, muita culpa e olhares de cumplicidade. Tão efêmero quanto vital, o gozo rebaixa a tensão num instante. Dolores e eu o esperávamos costumeiros para a reunião em casa de Alice e Pedro. Não há recomendação capaz de frenar um impulso. Estranhamente a sua gagueira desaparecia após a segunda dose e quando desandava a contar estórias e andanças quixotescas e reais, seu tom de voz sobressaia. Naquela noite algo parecia mais tenso e porque chovia estávamos todos muito próximos a ouvir e gargalhar sobre almofadas. Senha proibida - Alice o desafiou. A excitação potencializa a força do homem. De modo estranho, Márcio pulou do chão ao teto e agarrado ao lustre ficou com as pernas em pêndulo e até parar, todos gritavam: - vai morrer! Márcio vociferou: - Domingos suba aqui! - Olhei prá ele, ergui os ombros e as mãos. Descontrolados, Pedro e as mulheres se entreolharam e ele se apressou no comando: - venha Domingos, agora! E Dolores perguntou chorando: - quem é Domingos, Márcio? Só estamos nós quatro aqui!

Música: Asa Branca - Vitor Araújo.

recapitulados

Por Sueli Maia (Mai) em 1/18/2010
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Vão como voltam as ondas, os ventos e assim como o tempo, a história retorna recapitulada. Estrondo, escombros, silêncio e dor recorrentes nos ciclos. Reincidem os raios, os fachos, os feixes e em meio às fendas renasce alguma esperança. Há ditos, adictos, há ecos, há mãos e do inesperado - o amor...
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Imagens Google:

hiatos oníricos...

Por Sueli Maia (Mai) em 1/17/2010
Sons de flauta esvoaçando os cabelos, e a aurora caminhando sobre a areia era eu - líquida, fruida, hiante, em tons de azul. Dia acordando indolente em outro oceano, com lábios de luz e sopros de um novo sabor. Hiatos oníricos, acesos e esfomeados a espera de um beijo na primeira manhã. Algas famintas engoliram as bocas de outras bocas, apenas, com a posse dos olhos. Austro, tudo fruindo entre as fendas, porque o tempo não se retém. Pálpebra aberta, é a fresta de luz que acende na porta enquanto o silêncio, se desfaz em sorriso.
Híbridas, palavras pulsando no écran seus sonhos. E um sopro de luz caminha descalço seus nus, ardentes, famélicos a procura dos beijos, na emulsão d’areia, em muitas manhãs...
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Arte: Candido da C. Pinto
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observatório do mundo

Por Sueli Maia (Mai) em 1/17/2010
Ouvia notas e lia signos tentando tocar a sinfonia. Sinfonias são como pedras preciosas e o que são os diamantes? Diamantes não existem no céu e o céu sem poesia, também não é azul. Os dias de inverno na arte poética têm sol de calor diferente e o inverno sem arte é frio e igual. Sonâncias poéticas vibram em todos os sons e modulam, variando os tons desse mundo e o mundo apoético não muda, não é alto ou baixo, alegre ou triste, claro ou escuro. Permanece no escuro como todos os últimos dias. Garimpos tem veios d’água e o garimpeiro sonha encontrar diamantes de dia e de noite e sonhando, alucina diamantes artificiais. Artifícios são usados para enfeitar fantasias onde as vezes se vê o que se quer ver e, do observatório do mundo se vê, que a emulsão da retina nos olhos brilhando, também são diamantes de água, na luz. Essa sinfonia foi escrita em entrelinhas e enquanto observava o mundo, eu fingia tocar diamantes...
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Arte: V.Rubel

ossos e ofício...

Por Sueli Maia (Mai) em 1/16/2010
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Ossos são sonoros, guardam códigos e sorriem em seu chacoalhar. E a vida se renova na alegria nossa de cada dia. Então lembra a melodia dos meus ossos e não olvidarei os teus. O riso dos ossos estala no silêncio dos acordes do sacro dos humanos. Lembra. Porque a noite amplifica os gemidos e sussurros em meio à madrugada. Lembra que em meu esterno, ílio, púbis, guardei-te mil vezes, chorando meus risos em mortes de amor? Lembra que em tua face inscrevi meus infinitos e em meus braços acolhi teus desejos? Mas o silêncio na distância se fez grande e adulto, emancipou-nos. Em arquipélago, península ou cordilheira estivemos nós. Em nossos ossos, o corrimão da vida. Espero que um dia a janela complacente dos teus olhos lembre os sorrisos que quando exausta sussurrei: Shhh... eu te amo... Espero que algum dia tu entendas que em meus olhos, por anos, guardei em sorriso, o brilho deste amor. Meus ossos guardam equilíbrio e minha sustentação. A areia chia sob os artelhos. O vento cochicha aos meus ouvidos e eu caminho à beira mar porque estou só. Mas não esquece a melodia dos meus ossos porque eu pressinto o corpo solto de nós dois. Estou descalça e à minha frente o horizonte pede um grito. A vida é mais que eu, que tu ou nós. Há anos, em ti eu escrevi meus infinitos. Meus ossos e o ofício, meu sorriso e minha alegria estão aqui novamente.
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Música: Marina Lima - Não sei dançar e Ivan Vilela - violas
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A impermanência nos faz reinventar...

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