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Encaixotava e enlaçava seus abismos e lá ia de presente para o mundo aquela bomba, pronta para explodir. A água que se bebe é sempre a mesma e a ingenuidade é uma criança privada de gente por toda vida. Quando era menina eu cria que o mundo era um lugar bem longe de mim ai criei o gato de botas e um País de maravilhas. Alice foi morar no mundo e eu fui prá São Paulo, ingênua e desacostumada de saudade. Mas se eu não for quem sou, quem é que é? Quem me será que sou? Eu resolvi fazer faxina e achei a caixa de ‘retratos’ em branco e preto. À rua consertar sapatos saímos eu a bomba e sua angústia regressiva de saudade. Achar sapateiros em São Paulo carece sorte, muita agulha e um palheiro... Em Santo Amaro encontrei um com máquina, banco e um periquito a sujar tudo e me pediu para esperar. A sinfonia do lugar lembrou meu vilarejo e assim peguei o amarrado de ‘retratos’ e vi o filme do Tornatore, outra vez. Cada amigo de infância era um sorriso e a risada escangalhada era a lembrança de alguns tombos.
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Ai achei meu Vô na cadeira de balanço. Hoje eu penso que amar faz bem porque faz desejar compreender o outro, ser tolerante e ter vontade de ser e de fazer feliz sentar junto e conversar. Cuidar do outro é tudo que se quer e eu amava aquele meu Vô lindo com o cabelo bem branquinho... Mas não deve ser coisa de Deus ou dos deuses esse negócio de desprezo e menosprezo... É coisa de gente, mesmo. É coisa do humano desprovido de humanidade mesmo. Ai botar na conta de deus a crueldade que se faz, é sacanagem e aquela foto me lembrou o que faziam com meu Vô naqueles dias...Nem sei por que lembrei tão claramente o que passou naqueles domingos que de engraçados éramos só eu e o meu Vô (porque o resto era um inferno). Pensando bem foi meu nariz que acendeu minha memória. O cheiro daquele lugar levou o tempo narina adentro e prá bem longe lá bem dentro de um tempo e aquele tempo voltou de uma só vez... Era tanta náusea que eu sentia com o cheiro enjoativo do talco e do leite de rosas, naftalina e brilhantina ‘Glostora’ nos cabelos com ‘marrafas’ segurando rococós e a pomada ‘Minancora’ cobrindo a espinha do nariz... A Cadeira de vovô era cativa e balançava sem parar. O exército invadia meus domingos e o horror tomava conta do sítio com primos, tias, periquitos, papagaios, cachorros, (os cavalos eram eles à mesa) e toda bagunça do mundo se fazia em um só dia. Muita comida, bebida, copo que caia, criança que chorava e comadre que gritava e haja requinte. Alfredo disputava os ossos com os cachorros que rosnavam e ele a infernizar o bob aos pontapés mostrando o osso pro pobre do cachorro babar até morrer...
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Loucura mesmo era a lascívia dos gatos que roçavam as pernas roliças de tia Cândida e Alaíde solteironas beatas-vitalinas, cheias de pudor e falsidade que diziam jamais se casariam pois nem queriam e homem algum as merecia ou seu amor. Finas e requintadas, jamais, lavariam cuecas (e nem seriam roçadas às pernas a não ser pelos gatos tarados de madrinha). Mas falavam mal de toda cidade com olhos e bocas que torciam à direita volvendo à esquerda a condenar aquilo tudo que não lhes fora possível fazer com os homens (mas que dava prá ver, que bem queriam, pelo frenesi com que tremiam em ais e uis pedindo ao tio mais linguiça...) Eram as tias mais donzelas e pudicas de araque, sedentas e safadas que só vendo. Via-se no frêmito do tronco e sob as saias se calculava que a lascívia e o fogo às levaria direto ao confessionário (ou ao inferno) na próxima missa, e haja penitência... Rezavam terços usavam véus e, castas, qual ‘Geny e o Zepellin’, usavam calçolas (super sexy) feitas em puro algodão dos sacos de açúcar aproveitados e reforçados em costura dupla e de tão grande seus traseiros, boatavam os fofoqueiros vingativos que, de costas, em suas nádegas todos liam o rótulo: [IRMÃOS PRIMO S.A. - AÇUCAR UNIÃO] (não sei por que tanto zelo, mistério e apego àquela altura da vida). Aos domingos sempre a mesma algazarra com bocas se entupindo de frango, macarrão e farofa que se espalhava pelo ar no descuido ou descontrole da risada (um teatro do absurdo).
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Menina e muito quieta eu nem me incomodava, como hoje, com toda aquela finesse e discrição coletiva. Aquilo tudo era patético que só vendo. Meus ouvidos reclamavam e eu me escondia pelo mato no quintal tentando encontrar sacis, príncipes e feijões encantados como os do João. Não temia o lobo mau e sonhava em conhecer branca de neve para avisar sobre a maçã estragada e o veneno. Frutas no quintal, brincar com lama mais tarde meu primeiro beijo numa daquelas manhãs de domingo acanhado. Ah! Naquele tempo nada era tão grave e erotizado como hoje e maus modos, mesmo, era ficar na sala enquanto adultos conversavam coisas de adultos e criança não podia ouvir (até parece...). O que ficou de mais marcante desse tempo a minha memória eternizou. Foi o terno olhar do velho-Vô. Vovô viveu ternura pequenina e ele mesmo era lindinho feito um brinquedo bom com olhos que viam tudo e ao seu redor, olhava em tudo. Ninguém o via ou ouvia. Ele era o Rei no meu mundo encantado e ele sabia do reinado então me olhava em seu sorriso nu. Percebi a despedida silenciosa do meu Rei. Vovô morreu de saudades da vovó e da lembrança de uma vida de ternura em par. Com a morte do meu vô morreram os almoços e os domingos. Mas a vidinha besta e enjambrada em maus modos continuou viva e patética por muito tempo ainda. Nem disfarçaram a indiferença da ausência do meu Vô e até quiseram ver com pressa seu partir. Fecharam tudo com cimento e lá ficou meu Vô lá dentro. Sem ele também fiz silêncio por um tempo mas nunca esqueci seus olhos que falavam só prá mim. Uma cadeira de balanço me acordou guardei os retratos peguei meus sapatos e sai devagar...
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Imagem Google
Texto reeditado
Música: Bolero de Ravel - Pink Martini