Inspirar-Poesia, um segundo sopro

Escudo e Cervantes,a fidelidade...

Por Sueli Maia (Mai) em 2/07/2009
Um dia no espelho você examina a garganta e sem alarde sabe logo que não dá mais para adiar. O melhor mesmo é enfrentar o cárcere. Mas não se assuste ou panique, você será liquidificada em breve. Já me morri algumas vezes e renasci eu mesma, bem melhor. Nem sei se é bom e se é assim com todo mundo, essa história de renovar, mudar... E se são muitos os caminhos e há pontes, assim poderia escolher. Mas preferi me perguntar se já estava, de fato, pronta. Nem sempre se consegue fazer tudo, mas sábados são dias bon, há feiras populares. Eu me divirto olhando tudo e em meio às frutas aos cheiros e ao povo, eu faço a festa. Desfaço-me dos artefatos e artifícios costumeiros, visto-me de mim e sou o dia, sou Sancho Pança e saio às ruas. Eu durmo. Mas sempre tarde e durmo pouco. Eu não me queixo pois desse modo, sonho menos. Nem sempre foi assim e eu acho bárbaro. É que num tempo em que se encolhe o próprio tempo e cada vida que se deseja viver, meus dias são maiores e eu me encho mais e mais de vida. E vivo, mais que ontem. Dias em que eu não quis viver nem crescer. Hoje, meus dias são melhores, por sobre abismos e com arte eu vivo tudo o que é possível viver. Guardei tudo. Despi-me de mim e após outro banho, vesti-me de outra, em um jeans e camiseta branca, prendi os cabelos e sai. A missão era impossível. Nada menos que a loucura de encontrar um livro raro e improvável de achar. [Não sou aerada nem aluada ou aérea mas, quando traço uma meta vou na reta engato a marcha e vou.Se eu não bater pelo caminho, canto pneus e assobio somewhere over the rainbow em bis e arranco um fui...] No café da esquina uma revista e o dia inteiro para morar com o livreiro (já me disseram que os homens que ressuscitam livros e os salvam da morte são alfarrabistas. Eu tenho a mania besta de desconstruir palavras e, francamente, não consigo deixar de rir quando leio rabista.) Já li Zusak, não conheço nenhuma Liesel e mesmo assim, uma primeira edição de 'Os Sertões', me foi subtraída e eu chorei. Desde esse dia eu admito: eu tenho avareza. Mas só com livros sou'canguinha. A porta era daquelas altas e abria em duas. Meus olhos pulavam e eu sei que brilhavam... Olhava, girando sob as altas prateleiras e pensava na soma das vidas vividas e que ali repousavam. Eu não ousava calcular. O mundo era todo folhas amarelo-encardidas e comidas por traças. Muita vida, muita. Também muito silêncio e solidão nas prateleiras. O velhinho me encantava e me mostrava os séculos e os caminhos. Não encontrei o que buscava. Mas achei um Cervantes que dormia, era um mais velho que o meu e sentei.(não é libidinagem mas eu confesso que acaricio livros velhos como se o ente fosse um Ser). Acariciei levemente sua pele, senti o seu cheiro sem nada falar, senti seu sofrer, sua história para além da própria historia de Dom Quixote e Sancho Pança e quase beijo-o. (mas disfarço, prá beijar depois, em casa). Então eu olho em seus olhos e bem entregue, me deixo penetrar, pela história, outra vez...(Isso é quase uma dependência química, eu sei) De volta à Cervantes, sem pressa alguma eu me perguntava se estaria preparada para ver em mim, o eu e o outro. E em ambos, Dom Quixote e Sancho Pança, o que se busca como troca, proteção ou cura e do que se tenta curar ou disfarçar e esconder... A cada dia me convenço de que o Homem deveria reler todos os livros que já leu, de vez em quando.(outro dia eu li que é covardia bater em cego e em bêbados e é mesmo). A lucidez da releitura de Cervantes é quase lupa. Palavras se ampliam em cada linha, cada diálogo e em cada um dos personagens posso ver, claramente o absurdo, a transferência, a ilusão... Era um soco em meu estômago. Um dia me perguntaram o que eu faria se soubesse que só me restava um dia. Eu paniquei e depois, ri. Eu me lembrei que tento, ser fiel à mim. Não queimarei em qualquer fogueira por não ter sido 'santa', eu não sou mesmo. Sou humana. Não tenho pressa, eu tenho o dia inteiro só prá mim. Ainda não sei se poderei dizer o quando... Mas uma coisa eu sei, não me demoro muito ou tanto, eu sei que é menos, bem menos que pensei esse quanto que me falta...
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17 comentários:

lula eurico disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 18:30

Acercamo-nos dos livros, de todos eles, como o "engenhoso fidalgo" acercava-se dos livros de cavalaria. Por que não dizer da forma com o próprio Cervantes e o povo espanhol daquela quadra da história, acercava-se das aventuras dos cavaleiros andantes.
Dos livros...da palavra escrita, da palavra.

A língua mágica ouvida ainda de dentro do útero, ouvida nas canções que nos ninavam, ganham a mágica forma da letra, da caligrafia, da tipografia. E isso nos traz esse enlevo, como uma reminiscencia estranha e deslocada da voz materna. rsrsrs (Isso é conversa pra um divã rsrsrs)

Bem, o que há em nós ao acariciarmos um livros, não é loucura, como tanbém não era a do Quixote, e sim, paixão, esperança, ideal.
Cervantes alcançou, em seu 'livro-alusão", em seu "livro-escorço", o cerne da alma encantada do leitor. O que era Dom Quixote, senão um leitor, um voluntarioso e crédulo leitor?
E o que somos nós, Mai, amiga. Somos esses quixotes, esses leitores. Sentar aqui e ler e reler essas postagens, esses sinais gráficos que tentam traduzir vidas humanas...é, afinal, quixotesco, no sentido mais sério e dramático dessa palavra.

Luna disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 18:37

Cobardia é viver sem viver,
Saber quanto tempo falta, nem é importante
desde que nascemos que nos deveríamos preparar para esse derradeiro momento, pois a morte é uma consequência do nascimento, algo tão normal como o respirarmos.
Como sempre um texto que me faz pensar e escrito de uma forma que adoro
beijinhos

Luciene de Morais disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 18:51

Muito humana! Renascer sempre, ainda que seja no último dia. Mas é sempre bom não ter pressa, e ter o dia inteiro só para si, ou quanto tempo for preciso.
Beijo, amiga

Márcio Ahimsa disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 19:55

Hum, Mai, confesso que de Quixote, conheço apenas o que se desenhou pelas linhas da literatura num outro tempo, como noutro tempo muito se desenhou do universal do humano. O que se desenha pelas linhas da imaginação, sou leigo, pelas mãos de quem escreve, de quem lê, é algo que transcende os conceitos científicos, transcende conhecimento, do que se viu, se leu, se absorveu. Há, creio, uma empatia, me atrevo a dizer isso, entre os olhos, as mentes, o espírito, que norteia uma época, um sentir comum, assimilação de idéias, que, por vezes, vai além. Puxa, uma quase dependência, uma quase urgência... Quixote, outro tempo, uma certeza de agora haver coisas por fazer.

Beijos, querida, quase sempre, não sei comentar aqui. Mas sei sentir o que aqui se escreve.

Vivian disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 20:16

...uma pessoa que sabe
acariciar livros,
beijá-los até,
já provou que transcende
a esta pequenez humana,
e tudo que dela vier,
será apenas material
de pesquisa.

smackssss

Osvaldo disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 21:20

Oi, Mai;
Que bom ter trazido para cá Cervantes...
Alguém que inventou Dom Quixote e Sancho Pança, só pode ser o otimismo em pessoa. Dom Quixote o sonhador dos dias presentes que combate seus moinhos sem querer saber se no dia seguinte haverá outros pra combater e derrotar...
Uma vitória após outra e sem se importar quem no final ganhará a guerra porque o que será da vida quando não mais houver moinhos pra combater...
O que será o amanhã ?... Quem viver verá.
bjs
Osvaldo

meus instantes e momentos disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 21:20

Foi muito bom conhecer teu blog, foi bom vir aqui.
Tenha um belo final de semana.
maurizio

Dauri Batisti disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 21:34

Reler os clássicos, já aconselha ítalo Calvino. Ou ler.

Um beijo.

Anônimo disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 21:35

Isso me fez lembrar quando estive em Lisboa, na praça do Comércio, debaixo da arcadia, tinha um livreiro. Quando passei, fiquei encantada com os livros antigos ali expostos e não vi ninguém, nem o livreiro. Senti como se eu fosse criança. Coloquei as duas mãos para trás, como se eu estivesse vendo preciosidades, e olhava título por título, até o senhor dizer, surgindo do nada: pode tocá-los. Levei o maior susto! :)
Fizemos uma amizade muito legal enquanto estive por lá.

Tata disse... @ 7 de fevereiro de 2009 às 21:40

Ei....

Que gostoso poder se vestir de vc mesma e curtir um dia inteiro em sua própria companhia, fazendo o que se gosta sem pressa sem grandes acontecimentos, apenas vivendo.....
Tem coisa melhor????
bjinhos

Paula Barros disse... @ 8 de fevereiro de 2009 às 00:58

Mai

Não sei se você tem o endereço do sebovirtual. É muito interessante. Se quiser é só falar.

Eita menina, no blog de Élcio, coloquei você, ele e Dauri numa banda marcial, batendo aqueles pratos estridentes no meu juízo. Ou trio peso pesado para escrever e desalinhar o meu já desalinhado pensar e sentir.

Quando vou comentar já me embaralhei toda. rsrsr

- já pensei em reler o que já li, acho que deve ser uma experiência interessante;

- penso que devo ler mais;

- adoro olhar livros, imaginar. Quando entro numa casa não olho arrumação, adoro observar quadros e livros nas estantes;

- pelo que observo muitas pessoas não se pensam, e não se renovam. Talvez alguns.

- Dando nomes aos personagens, a forma que escreve dá um belo romance.

abraços

JOCENDIR CAMARGO disse... @ 8 de fevereiro de 2009 às 08:22

Olá Mai, nunca queimarás em qualquer fogueira porque és sábia e não feiticeira... Cervantes, Vitor Hugo, Balzaque ou Tolstoy, não importa qual, entre tantos, ler e reler mentes assim é o mesmo que degustar um manjar, deve ser um ritual, ao menos, mensal... Adoro seu espaço, é sempre delicioso ler você...
Um beijo com meu carinho uma semana doce tal meu manjar...

Átila Siqueira. disse... @ 8 de fevereiro de 2009 às 10:52

Que texto mais lindo, eu amo Dom Quixonte, amo livros, amo os sebos e todas as vidas nas prateleiras. Tudo é muito bom em uma leitura, e ler é um grande alimento para alma.

Também sou assim, fanático por livros, e me perco nas livrarias, como se elas fossem terras de sonhos. Na verdade, acho que são.

Um grande abraço,
Átila Siqueira.

Unknown disse... @ 8 de fevereiro de 2009 às 11:14

Olá.... simplismente, inspirador, teu blog. Adorei.
Beijos

Eu disse... @ 8 de fevereiro de 2009 às 11:16

Passei para ler, apreciar, absorver e colher as riquezas daqui,,, Aproveito para lhe desejar um belo Domingo!
Que seja muito...mas muito especial o seu dia!

Um abraço carinhoso

Paulo Roberto! disse... @ 9 de fevereiro de 2009 às 17:10

Olá, passando pra fazer uma visitinha, e pra dizer que tem pra você, um presente, no "Palavas apenas... Palavras apenas"!!

Abraços... Até mais!

Léo Santos disse... @ 16 de fevereiro de 2010 às 22:47

Ah! Sim! Quixote né!
Ouvi contar por aí do tal cavaleiro, dizem ser o mais corajoso de todo o mundo! Por saber sonhar! Por muito acreditar! E de tanto imaginar e amar!

Simplesmente o melhor!

Um abraço!

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